Crônicas II

A Rosa Branca
No modo de pensar dele, a rosa branca que se desenvolveu tão bem, destacando-se entre as demais em nosso jardim, “não merecia simplesmente murchar, fenecer, despetalando-se por fim como outra qualquer”. Então, resolveu podá-la cheio de cuidados e recomendou-me: Meu filho, entregue esta flor de presente a sua professora para que ela sinta o aroma e admire a dádiva da natureza.
Garoto encabulado, aceitei a missão a contra-gosto, pois teria de andar a pé alguns quarteirões até a escola onde me achava cursando o primário (1º grau). E seria alvo, na certa, de olhares dos moradores que fariam as costumeiras piadas: “Vais levar a flor para a professora que morreu?”
Cabisbaixo, entrei na sala de aula, quase vazia ainda, e tratei de depositar a rosa sobre a mesa antes que ela aparecesse, de sorte a não saber quem deixara o presente ali. E ao chegar, a professora mostrou muito entusiasmo ao ver a exuberante e alva flor. Ao perguntar à classe sobre quem a presenteara com tamanha delicadeza, seguiu-se um silêncio momentâneo até que alguém, de repente, apontou-me. Cheia de agradecimentos, a professora chamou-me e ofereceu-me umas balas coloridas, o que me deixou, por instantes, hesitante entre a gula e o acanhamento. Passadas várias décadas, ainda me lembro do frasco de vidro transparente a mostrar aquelas balas multicores.
Acontece que meu pai, ainda viúvo, homem bem apessoado, gentil, comunicativo, e romântico que era, considerava que aquela flor, já que haveria de se extinguir, tivesse os seus últimos instantes na posse de uma mulher de modo a ser apreciada, valorizada, até o fim da existência como se houvessem sido criadas uma para outra.
Por sua vez, agora penso, também ele sonhasse para si um igual destino, qual seja o de ser encontrado por alguém que de igual forma surgisse em seu destino, aceitando-o e acolhendo-o com ternura; uma outra mulher que o aconchegasse e o fizesse novamente feliz.
E na verdade, com o passar do tempo, isso realmente aconteceu em sua vida, tornando-o realizado ante um novo amor que lhe proporcionou maior motivação na existência.

Parte de Dentadura
Alguém teria deixado ali num canto do chão, bem na entrada da sede campestre do clube, parte de uma dentadura. Tratava-se da parte superior do objeto, sozinha, solitária, à disposição de algumas formigas. A peça parecia representar apenas um meio sorriso, sem o respectivo dono, cena surrealista.
Por conta de possível folclore, dizem que certos candidatos a cargos eletivos apelam para a simplicidade de uns e outros usando de artifícios com o objetivo de garantir os eleitores. E prometem aos mesmos, se eleitos, presentearem-nos com dentaduras ou par de sapatos. Para tanto, condicionam a oferta de maneira parcial, ou seja, adiantam-lhes uma parte da coisa prometida conforme o pedido: um pé de sapato ou um pedaço de dentadura, de sorte a inteirar o artigo depois, conforme o resultado das eleições.
Pelo que se pode imaginar, no caso, o candidato possivelmente não teria sido eleito; e a metade da dentadura abandonada ali naquele chão fica como a rir não sei de quê; deste comentário é que não há de ser.
E se, às vezes, certos cronistas de casos policiais relatam que o corpo de determinada vítima foi encontrado ao relento com a boca cheia de formiga, na presente história os insetos haveriam de dar por falta não só do corpo como, principalmente, da boca do infeliz.

Um Canto para Chorar
Enfim realizei o sonho de desfrutar de um cruzeiro marítimo em transatlântico de luxo. Foram quatro dias em nosso litoral sudeste, de Santos ao Estado do Rio de Janeiro passando por Angra dos Reis – praia privativa na Ilha Jaguanum –, Búzios e Cabo Frio.
Vinha-me à lembrança a primeira viagem marítima que fiz, do Estado do Espírito Santo ao Rio, ocasião em que eu contava, apenas, com uns quatro anos de idade; e já lá se vão umas sete décadas. Recordo-me, ainda, de que várias pessoas passavam mal ante o balanço do vapor. Ficou-me na memória a aproximação do cais do porto quando divisei os esguios guindastes que lembravam esqueletos de enormes girafas, ou animais pré-históricos, dada as ferragens de que eram formados.
Agora (dezembro/2008), surgiu-me a chance de passeio em navio moderno, com todo conforto e tecnologia do presente; tripulação gentil, solícita, paciente para com os turistas. Percebe-se que se acham bem orientados de modo psicológico para lidar com centenas de pessoas, entre as quais uns poucos que pecam pelo mal comportamento. Isto porque há indivíduos que, por exemplo, deixam pelo chão pratos e copos com certo risco de possível acidente. Cheguei até recolher alguns utensílios, mas logo vi equipe de faxineiros a vistoriar as dependências para deixar as coisas em ordem.
A tripulação do navio, sob a bandeira italiana, é constituída, em sua maioria, de estrangeiros, pessoal de variada nacionalidade como espanhóis, japoneses, italianos, alguns brasileiros. O salão de jantar, ambiente refinado, diferente de outros locais de refeições, também instalados por ali, conta com grandes mesas redondas para seis cadeiras de modo que, não sendo exclusivas, vemo-nos obrigados a fazer refeições com estranhos, em princípio, para logo nos relacionarmos formando um grupo socialmente agradável. Acredito que se alguém não gostar do convívio com certas pessoas, pode solicitar à administração mudança de mesa já que os lugares são previamente decididos e controlados por numeração, de modo aleatório pelos organizadores.
Quanto a nós, podemos dizer que fizemos bom entrosamento com os nossos três bons companheiros de mesa, todos radicados na cidade de São José do Rio Preto-SP: Novaes – jornalista; José Armando- professor,coordenador escolar; Claudine – produtor rural (ou fazendeiro, não sei bem). Este último, aparentando mais de cinqüenta anos de idade, cabelos meio grisalhos, sempre sorridente, homem de hábitos simples, igual a nós, confessou-me, estar vivendo momento “maravilhoso” em sua vida, coisa que não esperava dada a sua responsabilidade do dia-a-dia de “trabalho duro”. E chegou a confessar-me que, “tomado por tanta emoção, procurou um canto para chorar...”
Há quem pense que o enjôo do balanço da embarcação tire o prazer do passeio, mas o fato é que pude notar uma ou outra pessoa sentir mal estar, o que, todavia, não impedia que, praticamente todos, participassem das variadas programações: shows, cassino, teatro, boates, piscinas, sempre bem concorridos. Quanto a mim, de modo particular, usufruí, entre outras coisas, de finos vinhos espanhóis e chilenos, o que me faz pensar que meu organismo não estava de acordo em deitar fora tais maravilhas...
Ao retornar do passeio, voltando a minha rotina de vida, e sendo antevéspera de Natal, dirigi-me ao Correio para responder a algumas mensagens recebidas. Aí foi que tomei conhecimento, naquela agência, da campanha filantrópica de doação de presentes para crianças, conforme seus pedidos através de cartinhas a Papai Noel. E a primeira correspondência que peguei foi a de um garoto de dez anos que solicitava uma bola de futebol e um camisa de seu time do coração...Certamente ele não acreditaria em Papai Noel, mas cria na esperança, na felicidade, de ser atendido por alguma alma solidária ante o seu pedido tão singelo, diante do que, depois do presente que o destino me ofertou ao realizar um belo sonho, e diferentemente daquele companheiro de viagem, senti falta de um canto para chorar.
Pobre Circo...
Quando criança fui ao circo do meu bairro, logo que instalado. Enquanto arrumavam mastros, cordas e tudo o mais para suspender a grande cobertura, acontecia carreata pelas ruas de modo a promover o espetáculo. Assim, viam-se veículos conduzindo nas carrocerias jaulas de leões, macacos e demais bichos amestrados como, também, elefantes nas pistas em desfile surpreendente, além de palhaços e malabaristas.
Uma vez inaugurado, um dos números mais empolgantes era a demonstração do domador. Após atiçar bastante o leão com estocadas aparentemente ferinas, antes de ingressar no interior da jaula com chicotadas, portava ele um revólver na cintura para o caso de situação extrema de ataque verdadeiro do felino. Acredito, agora, que a arma era “fajuta”, só para criar o clima. Mas chegou a tal ponto o suspense junto à platéia que muita gente procurou se proteger subindo pelas arquibancadas de modo a ficar mais distante de eventual fuga do bicho enfurecido. E a apresentação, ao final, foi bastante aplaudida.
Certa coisa que eu gostei mesmo foi do mágico que, após mostrar ao público grande panela vazia, encheu-a de papel picado tampando-a de imediato. Em seguida destampou-a e, para grande surpresa de todos, ela mostrou-se cheia de balas. E atirou-as ao público que delirou. Ante a chuva das balas, eu e o pessoal saímos catando diversas caídas pelo chão, achando-nos maravilhados com o “milagre”.
Ao chegar em casa, pedi a meu pai que aprendesse esse truque de sorte a resolver de vez, e de “maneira simples”, a nossa gulodice.
Tempos depois, já pai de três filhos, levei as crianças a um circo na cidade de interior, onde chegamos a morar em certa época, de modo a distraí-las e reviver “o meu tempo”.
Mas o caso foi bem diferente. Este circo mostrava-se paupérrimo, com a lona furada em diversos pontos; na falta da animada banda, um disco de chamada ao “respeitável público” achava-se desgastado e chiando por demais, talvez empenado; o mágico que se mostrava sem cartola para retirar coelho, exibia a jaqueta desbotada e rota. Ele apenas fez surgirem umas bolas de dentro da meia e passou a jogá-las com malabarismo, igual a esses garotos que também o fazem nos faróis (semáforos) de trânsito nas ruas. A ajudante do mágico, trajando maiô, chamava a atenção ante o corpo deformado: da cintura para baixo apresentava espécie de gigantismo, enquanto dali para cima a sua constituição era normal. E se não fosse assim, a criatura poderia chegar, penso, a medir uns três metros de altura. Desconheço que anomalia vem a ser essa que, afinal, constituía show à parte, considerando-se a precariedade geral da casa. Que aberração, coitada!
Quanto à apresentação dos palhaços, nem me lembro se chegou a provocar risadas...
Na saída, perguntei às crianças se haviam gostado do circo, ao que responderam quase unânimes: Muito bom programa, papai. Mas quando vamos voltar outro dia para comer tão boas pipocas?
Excelentes pipocas... e pobre circo.

Esses Netos
Entre outras travessuras, não consentíamos que nossos pequenos filhos fizessem guerra de travesseiros trancados no quarto.
Hoje, os netos nos “dominam”: abrem a geladeira e a despensa para sonadar se há alguma novidade, alguma gulodice; e geralmente encontram bom-bom, leite condensado...Outro dia o pequeno Rafael, seis anos, fez um pilha de almofadas dessas decoradas, tipo indianas, e que a avó anda cheia de zelo com vistas a decoração do sofá.
E o garoto passou a saltar sobre elas e até caindo-lhes em cima no maior divertimento. A travessura foi tolerada sem qualquer advertência, a ser a de “cuidado, coração, para não cair de mau jeito...”.
Quando me viu surpreso assim que cheguei na sala, o garoto foi logo dizendo: “Vô, vamos apostar quem pula mais alto?”
Aceitei o desafio contando, obviamente, com indulto.

Minhas Neurastenias
Às vezes chego a pensar que sou o sujeito mais apressado do lugar, apesar de achar-me aposentado e sem compromisso com horários; invento ocupações de modo a não sentir o peso da ociosidade, e já lá se vão uns quinze anos que não sei o que é trabalho.
Ocorre, no entanto, que fico impaciente ao ver pessoas batendo papo em meio a calçada estreita da cidade, de modo a obstruírem, de certa forma, o fluxo do vai-e-vem dos transeuntes no centro comercial. Tais pessoas deveriam, ao menos, procurar achegar-se às paredes dos prédios e deixarem a passagem livre dos que têm mais o que fazer, o que não é o meu caso, embora pareça.
Certo dia notei um idoso a tossir, uma vez resfriado, sobre o tacho enquanto lidava com as frituras. Deixei de consumir os pastéis daquela lanchonete.
Outra coisa condenável são os pães colocados em cestas sobre o balcão das padarias, à mercê da poeira da rua e da clientela que aperta as bisnagas para ver se estão crocantes ou muito fofas, por excesso de bromato. É comum, também, os clientes se debruçarem enquanto falam em cima das mercadorias com aquela chuvinha de perdigotos sobre as coisas, sem a devida cobertura. Quanta falta de higiene, céus!Já nos bancos ou empresas públicas, em geral, procuro a fila especial para “gestantes, deficientes físicos, idosos”, achando-me neste último caso, ainda bem; e como tem “velho” que demora no atendimento!
O que ora estou a comentar, talvez faça parte das minhas neurastenias.
Ocorre, contudo, que procuro revestir-me de paciência quando minha pequena neta (4 anos) vem a mim, como opção de entretenimento, para eu brincar com ela “um pouquinho só”... Vejo-me junto a várias bonecas, fogãozinho e muitas miudezas de plástico. Se fosse um garoto, eu poderia até agarrar no gol enquanto ele chutasse, responsabilizando-me de modo a evitar quebrar coisas da casa.
Estou a pensar, neste instante: minha neta acaba de ganhar de presente um jogo de cozinha cheio de panelinhas, pratos, talheres... Qual será a comida que vamos preparar agora, hein gorotinha?
Outro dia ocorreu-nos o seguinte diálogo quando ela, olhando os meus pés, perguntou: Vovô, por que você só tem quatro dedos nos pés? Respondi que tenho os cinco dedos, sendo que o menor fica escondido no cantinho dos chinelos. Mas Gabrielinha acrescentou: Vovô, você está ficando velho... Ao que eu respondi: Estou perdendo é a memória e os cabelos, mas os dedos dos pés não. E ela: Quando você morrer, quem vai ser o meu avô? Aí fiz-lhe ver que ela vai ficar com o outro avô, Olavo (paterno) que mora em Palmital. E ela: Mas é longe... Eu acrescentei: Mas ele pode vir aqui ou você pode ir até lá visitá-lo. Então, a criança debruçou-se em meu colo falando com certa trinteza: Eu não quero ficar sem você.
Quando lembro desse diálogo me comovo, e peço a Deus que eu faça jus ao amor que minha neta Gabrielinha demonstra por mim.

Lembrança do Primeiro Seio
Por volta dos nove anos de idade foi que, por assim dizer, vislumbrei o primeiro seio... E guardei como se fora sacrilégio esse segredo por muito tempo; e ainda tenho comigo a cena levemente decalcada na lembrança.

Aconteceu que, naquela ocasião, percebi uma bonita jovem a correr apressada para pegar a condução prestes a sair do ponto, instante em que ela mais parecia saltitar nos calçados de salto alto; e foi aí que, de repente, um dos seios pulou do decote. De imediato, a moça , ainda em movimento, e sem olhar para os lados, recolocou o “rebelde” róseo em seu devido lugar. Creio que ela chegou a corar as faces, encabulada; era época de muito pudor.. Reporto-me à década de 1930 quando ainda não se falava, no Brasil, da moda “ topless “.
Naquela idade, o fato causou-me grande impressão, quem sabe por questão de certa precocidade da natureza humana.
A cena, embora sutil, marcou-me indelével, e aflorou-me na memória quando, em recente programa externo, repórteres de televisão entrevistavam transeuntes na rua sobre tema de sexualidade.
As pessoas eram consultadas quanto a melhores ambientes para a devida prática, mais prazerosas. Homens e mulheres, alguns revelavam que o aconchego do quarto era o ideal. Alguém falou que a aventura em uma praia deserta era “boa pedida”.
E assim ia ao ar o programa televivo, tema bastante chamativo, de audiência.
Mas achei interessante a reação de certa mulher, bastante simpática, que, uma vez também abordada, pôs a mão no rosto, mostrando-se meio encabulada, dizendo: -Que vergonha falar “ao vivo” sobre isso...
Essa é também daquela época em que o pudor nos falava mais alto.


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