Lei só para mim?
Certa vez, não atinando que a avenida havia mudado a mão-de-direção entrei errado e levei multa, percebendo tarde o meu erro. Orientado por despachante conhecido, paguei uma taxa e recorri da multa sob alegação de que “a mudança implantada naquela via era recente, não dando tempo de o condutor do carro acostumar-se de imediato, etc e tal”. Conclusão, o tempo passou e nem tive resposta sobre o recurso. Acabei pagando a multa além da taxa conforme sugerida pelo tal despachante. E fiquei até com vergonha de haver usado argumento pueril junto ao órgão de trânsito. Cabe às pessoas atentas acompanharem, através dos meios de comunicação, mudanças que sempre ocorrem.
Certa vez, não atinando que a avenida havia mudado a mão-de-direção entrei errado e levei multa, percebendo tarde o meu erro. Orientado por despachante conhecido, paguei uma taxa e recorri da multa sob alegação de que “a mudança implantada naquela via era recente, não dando tempo de o condutor do carro acostumar-se de imediato, etc e tal”. Conclusão, o tempo passou e nem tive resposta sobre o recurso. Acabei pagando a multa além da taxa conforme sugerida pelo tal despachante. E fiquei até com vergonha de haver usado argumento pueril junto ao órgão de trânsito. Cabe às pessoas atentas acompanharem, através dos meios de comunicação, mudanças que sempre ocorrem.
Outro dia vi um carro passar com adesivo que dizia: “Sou trouxa pago, imposto”. Claro que o cidadão usava de ironia por sentir que os tributos que pagamos não retornam à comunidade em termos de benefícios sociais, como de se esperar.
Foi aí que me veio à cabeça quando verifiquei que determinada rua do centro da cidade passou a se tornar proibido o veículo virar à esquerda, por questão de disciplinar o trânsito naquele ponto considerado “crítico”. Tudo bem, mas eu quase entrei errado por força do hábito. Dias depois, devidamente prevenido, não dei mais bobeira tendo que ir mais adiante e retornar pela via que daria acesso legal.
Aconteceu que, poucos dias depois, mas como que de repente, n otei diversos carros a entrarem por ali normalmente. E não vendo nenhum guarda de trânsito no local, perguntei a certo comerciante por perto o que teria acontecido pelo fato de os motoristas estarem descumprindo as recomendações das autoridades. Então ele me disse, mostrando naturalidade, aquela ordem foi relaxada porque o pessoal, na prática, não estava obedecendo.
Agora vejam só: e eu que quase fui multado outra vez!
Estou até pensando em usar adesivo no meu carro: Sou trouxa, cumpro a Lei!
Alma Penada
Desde Criança ouço falar em alma penada, aquela que permanece vagando entre os vivos, desorientada, sem seguir o seu destino, assunto que me deixava amedrontado na hora de ir para a cama, à noite.
Hoje em dia, às vezes fico pensando que eu também tenho algo a ver com o sobrenatural. É que, saudosista que sou, vejo-me atraído, preso à memória, a querer sempre retornar aos lugares em que passei, bem como rever pessoas com quem convivi.
E na mais tenra idade, aos cinco anos, morei na cidade de Paulo de Frontin, Rio de Janeiro, lugar onde ainda pretendo visitar depois de várias décadas transcorridas. Dali guardo certas lembranças, embora tenha morado na localidade por pouco tempo: a liberdade de brincar com meus irmãos no grande quintal, colher morangos silvestres, assustar os sapos, temer as cobras. Naquele tempo a localidade não contava com certo progresso, tinha ainda algo a ver com roça.
Daquela época tenho marcada a triste recordação da figura de minha mãe seriamente adoentada, lívida, esquálida, tosse convulsiva, sendo conduzida por meu pai e mais alguém em cadeira de vime até conseguir condução de modo a seguir para o hospital, creio.
Foi também nessa época que eu passei a ouvir pelos rádios da vizinhança a possante e saudosa voz de Vicente Celestino. E quando ouço as suas gravações, sinto-me absorto, fixado no passado, sem tentar me afastar, igual alma penada.
Caminhada
Aceitei o atencioso convite (ou desafio?) em participar da caminhada de cerca de quinze quilômetros daqui de Varginha até as proximidades da cidade de Monsenhor Paulo, sendo o retorno através de diversos ônibus fretados. Meu objetivo era o de acompanhar os devotos até ao lugarejo denominado Fazenda Novo Mundo, onde seria celebrada missa na Igreja São Judas Tadeu / “Rural” pelo dia 28 de outubro, data consagrada ao referido santo.
Assim, com muito respeito, e cheio de espírito esportivo, segui os fiéis os quais se mostravam bastante motivados a pagarem, ante tamanho esforço, seus “tributos” pelas importantes graças alcançadas junto ao padroeiro. E fiquei surpreso, em determinado ponto, ao deparar com uma antiga ponte localizada por baixo da atual que passa sobre o Rio Verde, nas proximidades do Clube Campestre e da bem comentada mansão da “Tia Kátia” ...
A partida, contando com mais de cento e cinqüenta romeiros, aconteceu por volta das quinze horas em dia felizmente nublado Durante o percurso, e para quebrar a monotonia, dirigi-me a um grupo de animados adolescentes e também lancei o desafio: - O último a chegar ali adiante da curva é um “zé mané!” Foi uma divertida correria com boas risadas, assustando os que iam na frete.
A certo ponto da jornada, por lugares muitas vezes ermos, já me sentindo meio cansado, e para revigorar meu ânimo, passei a cantar baixinho, de modo a que ninguém percebesse, marchas e hinos militares que me vinham à lembrança: Canção do Marinheiro, Canção do Soldado, a Marselhesa, Hino à Bandeira, também aquela do filme A Ponte do Rio Kway... Desse modo punha-me a marchar intuitivamente em passos mais cadenciados só pensando na vitória final, ou seja, a chegada.
O pior, coisa que eu não contava, era certa subida íngreme de morro “ para cortar caminho”, segundo os guias. Nesse momento, admiti que não deveria ter participado de tal programa (de índio?) mais adequado para quem conta com mocidade, costume ou muita fé. E fora eu, não percebi ninguém que estivesse na terceira (ou última) idade.
Naquela subida inesperada, baixei a cabeça para não ver, e não desanimar, o quanto ainda faltaria para atingir o topo. Não se tratava propriamente de morro bem alto, mas uma subida penosa para mim, caso particular, depois de três horas de caminhada sem parar (moral em jogo). Na maior parte do tempo sentia-me como que sozinho na multidão, apesar de um ou outro conhecido aproximar-se de mim e consultar-me, gentilmente, como eu estava me sentindo. Aproveito para registrar meu agradecimento a tais espíritos solidários.
Afinal, chegamos bem próximos do objetivo visado, onde seria realizada a cerimônia religiosa. Nesse ponto, e por orientação do padre Rogério, o pessoal parou para esperar os retardatários de modo que todos estivessem juntos na hora da celebração da missa.
Depois de aguardarmos os demais por cerca de uns cinqüenta minutos, chegamos ao local pretendido; vejam quantos vieram depois de mim! A essa altura eu ansiava por qualquer banquinho que fosse, e divisei um junto ao treiler no canto mal iluminado, onde vendiam churrasquinhos no espeto, latas de refrigerantes e cervejas. Pedi ao homem que me servisse algo gelado desde que pudesse sentar-me, por instantes, naquele banquinho. Ali fiquei um tanto feliz, “posto em sossego” (como diz o poeta) por uns dois minutos apenas, já que me surgiu uma pobre idosa, de casaco meio surrado e da cor grená, dizendo que o lugar era dela e que se levantara para comprar pastel, ou coisa assim... Então ergui-me, de imediato, para ceder-lhe a vez ao tempo em que o homem dizia que eu poderia ali permanecer, já que a tal criatura era “pessoa da casa”. E a velha também acrescentou que não fazia questão e que eu poderia ficar à vontade. Apesar da má iluminação (já era noite, óbvio) ainda notei nela o rosto esbranquiçado a ressaltar o batom vermelho, resultado de maquiagem exagerada, coisa que não vem a ser da minha conta, devo reconhecer.
Assim que me afastei dali para estar presente na missa, percebi a tal senhora em meio a um grupo de pessoas e aproveitei, de passagem, para avisei a ela que deixara o banquinho meio escondido naquele local, de modo a que nenhum outro cansado o visse. E ela foi de imediato para lá.
Iniciada a missa ao ar livre, coloquei-me próximo à barraca que venderia fichas para as diversas atrações que aconteceriam logo após. De repente, aproximou-se de mim a tal idosa de rosto empoado e “agasalho meio surrado, da cor grená”, a dizer que aquele assento estava à minha disposição para quando terminasse a missa.
Agora, descansado, me ponho a imaginar que São Judas Tadeu, considerado o santo das causas impossíveis, venha conceder-me a graça de participar de demais caminhadas exitosas no decorrer da existência.
Carta
Paulo “Velho de Guerra”,
Ante a leitura feita por Maria Adélia, recentemente, por telefone, inspirada em tuas memórias (conforme datilografadas) acerca de reminiscências da infância, quase cheguei às lágrimas por recordar-me de certas passagens, principalmente a partir do ano de 1935, quando eu contava com cerca de cinco anos de idade. Ainda bem que eu me encontrava sozinho, no aposento, sem testemunha que me deixasse constrangido. Rogo-te que tenhas piedade deste meu coração fragilizado ante emoções , órgão esse que não tem condições de atender a qualquer necessitado de transplante, salvo se igualmente se tratar de alguém muito sentimental.
Dou-te parabéns pela memória lúcida, ao falar ou escrever.
Recordo-me também do episódio do transporte em jacá de vime, tipo casulo, tendo-te como visinho, do outro lado do jerico, quando ambos chorávamos em pânico ladeira abaixo, íngreme... Penso que eu chorava em solidariedade ao irmão amigo igualmente vítima de tal aventura. E penso: “Tortura nunca mais...”, só que, em casos assim, deixam-nos saudáveis recordações. Acredito que se tratava, por conveniência do momento, de improvisação daquele meio de transporte, pela a distância a ser percorrida, por exemplo. Enfim, qualquer fator que sugerisse criatividade na hora, e não brincadeira ou trote (este último só se fosse do animal ).
Recordo-me do retorno do Estado do Espírito Santo, de vapor, quando várias pessoas vomitavam à beça. E ao aproximarmo-nos do porto do Rio (Praça Mauá), divisei, ainda a certa distância, os imensos e esguios guindastes que mais me pareciam esqueletos de enormes girafas. Daí, inspirei-me ao escrever a crônica sob o título “Girafas em Fogo”, em cujo final procuro dar, como “tempero”, um toque um tanto hilariante.
Caro irmão, agora o ‘mais velho’, recebe um afetuoso abraço, extensivamente aos familiares, deste teu admirador desde os tempos em que distraias a todos com os teus desenhos e com o teu bom humor.
Girafas em Fogo
Certa coisa que tanto me impressionou, e se fixou em minha memória, foi uma espécie de visão surrealista do Rio de Janeiro quando o navio que nos conduzia, a mim e familiares, procedente de Vitória, Espírito Santo, aproximou-se do cais do porto. À medida em que a embarcação ia chegando, eu me punha a divisar certos corpos estranhos como se fossem esqueletos, de aspecto pré-históricos, mas que aos poucos iam adquirindo suas formas verdadeiras. Isso aconteceu há cerca de sete décadas, ocasião em que eu contava, ainda, com cerca de quatro anos de idade. E o que tanto me causara admiração naquela visão “fantástica” eram, apenas, os guindastes de aço, altos, a se moverem lentamente sob o efeito do sol que lhes criava tonalidades avermelhadas ao longo dos corpos esguios.
Hoje, ao me deparar, a cada passo, com alguma gravura ou mesmo comentários a respeito da famosa obra de arte surrealista “girafas em fogo”, mundialmente conhecida, de Salvador Dali, por incrível analogia vêm-me à lembrança aqueles imensos guindastes abrasados pelo sol. Só que estes têm base fixa no solo enquanto as girafas, aparentando inércia, nem se mexem. Se eu fosse o artista, autor do famoso quadro, representaria os animais em disparada louca a escoicearem pelo mundo afora ante as intensas chamas em seus dorsos.
Mas pensando bem, é óbvio que, aí, eu estaria a representar cenário real, e não mais um caso de surpreendente arte de impacto de estilo surrealista.
Os Miseráveis
Trata-se de obra clássica de Victor Hugo na qual o autor narra histórias baseadas do submundo em Paris nos idos de 1914, época em que a França vivia instabilidade política, econômica, e de conflito mundial.
O romance traz como figura principal um pobre miserável que foi pego em flagrante quando do roubo de um pão, acuado pela fome.
Não conformado com o cárcere, Jean Valjean procurava sempre evadir-se de modo que ao ser novamente detido e julgado via a pena aumentada, o que lhe valeu muitos anos de prisão.
Certa vez fugiu e, desesperado, à noite, debaixo de intenso temporal, por obra do destino bateu à porta de certa igreja, sendo acolhido pelo bondoso bispo que lhe providenciou refeição e alojamento dignos.
Ao acordar ainda pela madrugada, e sentindo voltarem-lhe as forças, o bandido partiu na calada furtando os dois castiçais de prata do altar. Mas logo adiante, sendo alvo de suspeita, foi abordado por milicianos e, após confessar, conduziram-no à presença do santo bispo. Este, pensando em dar mais uma oportunidade ao infeliz, se disse surpreso ante a devolução dos objetos uma vez que os havia presenteado, e de modo espontâneo, para que o homem tratasse de melhorar a sua situação tão precária. E ordenou aos guardas que se fossem e deixassem “seu hóspede” em paz...
E os capítulos da importante obra se desenrolam em sucessão de fatos, surgem tantos personagens a influir, por força das circunstâncias, na vida daquela criatura rude, que o homem acabou sofrendo espécie de metamorfose espiritual na personalidade. Desde a cena dos roubo dos castiçais, dado o tratamento e exemplo de humanidade de que fora alvo, começou ele a ver a vida de maneira diferente.
Como que por milagre, acabou transformando-se em cidadão de bem; autodidata, tornou-se sábio e passou a promover caridade, sendo bem quisto por onde passava.
Outro dia lembrei-me desse importante livro quando, à noite, debaixo de intensa chuva, alguém bateu-me à porta pedindo algum alimento. Despachei a criatura através mesmo da fresta da porta, notando sua aparência suspeita. Se eu o atendesse, teria de dar-lhe, à semelhança daquele santo religioso, alimento acompanhado de abrigo que a ocasião recomendava e que todo nosso semelhante merece, em igual situação. Então o pobre afastou-se lento, cabisbaixo, com seus andrajos encharcados.
Agora fico eu a sofrer este sentimento de culpa porém resguardado, como que entrincheirado, a preservar a segurança da família.
As Religiosas Hão de Corar
Os conjuntos de forró muito animam as festas com ritmos bastante contagiantes, sem dúvida. Os pares dançam o tempo todo, e quem não tem companhia fica em seu canto balançando o corpo com entusiasmo. Nota-se que as pessoas que conhecem a letra ou refrões acompanham cantando, inclusive crianças.
Todavia, quem não estiver participando da dança e ficar só apreciando, e prestar atenção nas letras, nas rimas, há de observar, muitas vezes, a apelação do compositor ao criar, de modo explícito, palavras de baixo calão, chocantes, sem censura alguma, de sorte a conseguir sucesso por se tratar de modismo.
Poderiam esses inspirados indivíduos não descerem a tão baixo nível, principalmente em ambiente incompatível com esses chamados forró-pornô.
Acontece até serem contratados para animar festas religiosas, de finalidade filantrópica quando, “sem ver a quem”, não estão nem aí para qualquer tipo de crítica. No meu caso, mesmo considerando meu berço familiar, minha educação tradicional, hoje em dia sinto-me cobra criada e essas coisas não me afetam, particularmente.
Há quem defenda que palavrão está é na cabeça de pessoas hipócritas, e que palavrão verdadeiro são as falcatruas, os cambalachos, que têm ocorrido nos diversos escalões do governo, considerando-se o que vem sendo divulgado. Mas tais casos lamentáveis por parte de uns e outros não vêm a ser motivo para se generalizar, dando a impressão de querer igualar por baixo.
Entretanto quero crer que, de prático, nesse caso da pornografia tão divulgada assim, sem cerimônia, é que a palavra chula tende a ser banalizada de tanto cair no uso, como ocorre com certas gírias que acabam se consagrando e se tornam usadas a qualquer hora, em qualquer ambiente, sem causarem impacto.
Mesmo que eu venha a ser tachado de moralista, careta, deixo nestas linhas o meu protesto na crença de que, pelo menos por enquanto, se prestarem a atenção nas letras dos sucessos do forró-pornô, principalmente por ocasião das festas promovidas pelas igrejas, as religiosas hão de corar.
Baba de Quiabo
“Baba de quiabo” vem a uma ser expressão jocosa mais de carioca, penso.
Significa que se um sujeito quer levar o outro na conversa, com objetivo de convencer o cara, usa de certo ardil para ganhar proveito. Diz-se também ser a “psicologia da cegonha”, ao levar uns e outros no bico...
Precisei disso outro dia de modo a conseguir vantagem. É que certa casa na vizinhança conta com uma frondosa mangueira bem carregada. Alguns frutos despencam lá do alto e caem no chão do estacionamento público, com risco de provocar possíveis mossas na lataria dos carros estacionados naquele local.
Eu fico na expectativa igual a raposa da fábula que se punha de olho nas uvas.
Mas além de o muro ser muito alto, já passou o meu tempo de roubar frutas dos vizinhos desde que levei grande lição. Foi quando, certa vez, quando garoto, animado pela molecada, também pulei no quintal de um homem de maus bofes que deu o “flagra” e correu furioso atrás de mim, por ser o que se achava mais próximo dele. Se me pegasse, seria aquele puxão de orelhas.
Conforme eu estava contando, e voltando a falar sobre a atual casa vizinha, percebi uma placa dizendo que ali se acha estabelecido um cirurgião-dentista.
Então bati à porta com a desculpa de obter certas informações sobre orçamento dentário. Quem me atendeu foi a simpática governanta dizendo que o patrão se encontrava em viagem. Perguntou, ainda, se eu estaria com algum problema porque, se fosse o caso, ela teria como entrar em contato com o doutor. Aí falei que poderia aguardar tranqüilamente a volta dele, sem pressa alguma e, logo em seguida, entrei em outro assunto. Disse a ela que, por obra do acaso, ao estacionar o carro, vi uma manga caída no chão e, ao provar, achei-a bem saborosa. Então a dona indagou-me se eu gostaria de ganhar algumas. Sem vacilar, logo que ela pronunciou a última sílaba da palavra “ganhar”, disse-lhe que sim se não causasse incômodo etc e tal...
Aguardei uns instantes e logo veio a senhora com uma sacola cheia.
Pular muro? To fora, gente!
Buquês de Hortências
Foi uma noite de gala a apresentação da Orquestra de Câmara de Stuttgart em nossa cidade, programação que, sem dúvida, enobrece qualquer comunidade.
Antigamente, na chamada bela época, as pessoas compareciam a tais eventos procurando trajar-se de maneira protocolar, com muita etiqueta, quando as mulheres apresentavam-se em vestidos de gala que se completavam com o uso de vistosos chapéus. Já os homens não dispensavam coletes e até mesmo bengalas, detalhes que contribuiam para caracterizar os trajes a rigor ; tudo raro hoje em dia.
O público lotou as dependências do teatro prestigiando o acontecimento, não poupando calorosos aplausos aos internacionais e renomados músicos.
Por minha vez, creio que não fiz papel feio no meu traje esporte-fino, já que predominava no ambiente a informalidade. Ainda bem que não vi ninguém de roupa estilo jeans e tênis, coisa bastante popular atualmente; era só o que faltava.
Interessante que, em meio à concorrida platéia, achavam-se presentes diversas senhoras a “camuflarem” os cabelos brancos com leve tintura em tom lilás, de maneira que me vinham à lembrança delicados buquês de hortências.
Entretanto, o que me chamou mais a atenção foi um casal de aparência bem clássica no modo de tajar : o cavalheiro, de bela gravata borboleta e elegante casaco, a exibir costeletas e bigode grisalhos, fazendo-se acompanhar de fina dama em vestido longo, modelo que apresentava sensual decote, o único da ocasião ao que me parece.
Cachorros Esquisitos
Nas minhas chegadas de porta em porta na coleta de mantimentos a serem doados a certa entidade filantrópica, da qual sou voluntário, é comum deparar-me com cachorros nas casas visitadas, conforme acontece com os carteiros. Aí é que o bicho pega...
Há uma residência em determinado endereço em que existe um cão de porte médio, pelo raso, amarronzado e olhos cinza-claros que, ao me aproximar, estica feroz a fina correia em que se acha preso e tenta investir contra mim; nem sei se se trata de um vira-lata.
Os donos dizem que “é apenas fita por parte dele e que, uma vez solto, não faz nada”.
Meio incrédulo, guardo distância estratégica enquanto espero ser atendido. Mas fico apreensivo quando eu e ele estamos como que cara-a-cara, sendo o muro baixinho.
Experimentei, ultimamente, ganhar simpatia do animal. Passei a cantar para ele canções nostálgicas, do meu tempo: Boemia, Carinhoso, Camisola do Dia... E o engraçado é que ele pára de latir, vai amansando, põe-se em sossego balançando a cauda de modo amistoso. Então, só com a boca entreaberta, dá a impressão de estar a sorrir feliz.
Outro cachorro de procedimento esquisito, e de menor porte do que o outro, e não menos hostil, foi aquele que, tão logo viu que me aproximava, ficou a rosnar furioso, cheio de salivação, “com o pelo do dorso mais eriçado que as cerdas bravas do javali”, como diria Nélson Rodrigues. E, nesse estado, esbarrava na grade ameaçando sair para atacar-me. No caso, nem me animei a apelar para o repertório das antigas canções.
Por fim o dono chegou para atender-me, momento em que me afastei um pouco do ponto em que me achava, parado igual estátua, de maneira a poder receber a doação. Aí foi que o cachorro resolveu ultrapassar o vão da grade, passar por mim indiferente e ganhar a rua balançando o rabo de modo alegre. Creio que eu o estava era impedindo de fugir, obstruindo aquele espaço por onde costuma evadir-se, pelo que se deduz.
E porque ele não falou logo?
São cachorros esquisitos, concordam?...
Caminhada
Aceitei o atencioso convite (ou desafio?) em participar da caminhada de cerca de quinze quilômetros daqui de Varginha até as proximidades da cidade de Monsenhor Paulo, em louvor a São Judas Tadeu, sendo o retorno através de diversos ônibus fretados. Meu objetivo era o de acompanhar os devotos até ao lugarejo denominado Fazenda Novo Mundo, onde seria celebrada missa na Igreja São Judas Tadeu / “Rural” pelo dia 28 de outubro, data consagrada ao referido santo.
Assim, com muito respeito, e cheio de espírito esportivo, segui os fiéis os quais se mostravam bastante motivados a pagarem, ante tamanho esforço, seus “tributos” pelas importantes graças alcançadas junto ao padroeiro.
Fiquei até surpreso, em determinado ponto, ao deparar com uma antiga ponte localizada por baixo da atual que passa sobre o Rio Verde, nas proximidades do Clube Campestre e da bem comentada mansão da “Tia Kátia” ...
A partida, contando com mais de cento e cinqüenta romeiros, aconteceu por volta das quinze horas em dia felizmente nublado Durante o percurso, e para quebrar a monotonia, dirigi-me a um grupo de animados adolescentes e também lancei o desafio: - O último a chegar ali adiante da curva é um “zé mané!” Foi uma divertida correria com boas risadas, assustando os que iam na frete.
A certo ponto da jornada, por lugares muitas vezes ermos, já me sentindo meio cansado, e para revigorar meu ânimo, passei a cantar baixinho, de modo a que ninguém percebesse, hinos e dobrados militares que me vinham à lembrança: Canção do Marinheiro, Canção do Soldado, a Marselhesa, Hino à Bandeira, também aquela do filme “A Ponte do Rio Kway...” Desse modo punha-me a marchar intuitivamente em passos mais cadenciados só pensando na vitória final, ou seja, a chegada.
O pior, coisa que eu não contava, era certa subida íngreme de morro “ para cortar caminho”, segundo os guias. Nesse momento, admiti que não deveria ter participado de tal programa (de índio?) mais adequado para quem conta com mocidade, costume ou muita fé. E fora eu, não percebi ninguém que estivesse na terceira (ou última) idade.
Naquela subida inesperada, baixei a cabeça para não ver, e não desanimar, o quanto ainda faltaria para atingir o topo. Não se tratava propriamente de morro bem alto, mas uma subida penosa para mim, caso particular, depois de três horas de caminhada sem parar (moral em jogo). Na maior parte do tempo sentia-me como que sozinho na multidão, apesar de um ou outro conhecido aproximar-se de mim e consultar-me, gentilmente, como eu estava me sentindo. Aproveito para registrar meu agradecimento a tais espíritos solidários.
Afinal, chegamos bem próximos do objetivo visado, onde seria realizada a cerimônia religiosa. Nesse ponto, e por orientação do padre Rogério, o pessoal parou para esperar os retardatários de modo que todos estivessem juntos na hora da celebração da missa.
Depois de aguardarmos os demais por cerca de uns cinqüenta minutos, chegamos ao local pretendido; vejam quantos vieram depois de mim! A essa altura eu ansiava por qualquer banquinho que fosse, e divisei um junto ao treiler no canto mal iluminado, onde vendiam churrasquinhos no espeto, latas de refrigerantes e cervejas. Pedi ao homem que me servisse algo gelado desde que pudesse sentar-me, por instantes, naquele banquinho. Ali fiquei um tanto feliz, “posto em sossego” (como diz o poeta) por uns dois minutos apenas, já que me surgiu uma pobre idosa, de casaco meio surrado e da cor grená, dizendo que o lugar era dela e que se levantara para comprar pastel, ou coisa assim... Então ergui-me, de imediato, para ceder-lhe a vez ao tempo em que o homem dizia que eu poderia ali permanecer, já que a tal criatura era “pessoa da casa”. E a velha também acrescentou que não fazia questão e que eu poderia ficar à vontade. Apesar da má iluminação (já era noite, óbvio) ainda notei nela o rosto esbranquiçado a ressaltar o batom vermelho, resultado de maquiagem exagerada, coisa que não vem a ser da minha conta, devo reconhecer.
Assim que me afastei dali para estar presente na missa, percebi a tal senhora em meio a um grupo de pessoas e aproveitei, de passagem, para avisar a ela que deixara o banquinho meio escondido naquele local, de modo a que nenhum outro cansado o visse. E ela seguiu, de imediato, para lá.
Iniciada a missa ao ar livre, coloquei-me próximo à barraca que venderia fichas para as diversas atrações que aconteceriam logo após. De repente, aproximou-se de mim a tal idosa de rosto empoado e “agasalho meio surrado, da cor grená”, a dizer que aquele assento estava à minha disposição para quando terminasse a missa. No momento, dada a profusão de besouros a esvoaçarem ante as diversa lâmpadas colocadas em longos fios esticados ao ar livre, e a presença de corujas em pontos estratégicos atentas às presas em potencial, aquela ao mulher “mascarada”, chegava a passar-me algo de lúgubre.
Agora, descansado, me ponho a imaginar que São Judas Tadeu, considerado o santo das causas impossíveis, venha conceder-me a graça de participar de demais caminhadas exitosas no decorrer da existência.
Carta a um Velho Parente - (Reminiscências)
Estimado e “velho” tio Florentino,
Recebi sua ansiada carta e, como sempre, a saudade sacudiu-me o coração ameaçando-me acomodadas lágrimas. Isso acontece porque, invariavelmente, associo a sua figura à de meu venerado pai, o que se justifica ao levarmos em consideração, além dos laços familiares e dos traços fisionômicos, a afinidade filosófica e a sensibilidade poética de ambos.
Em conseqüência, e por sucessão de pensamentos, vem-me à memória aquele passado ora tão distante em que convivíamos todos nós de mãos dadas, solidários nos mesmos problemas, morando naquela modesta casa em Sepetiba, sendo meu pai viúvo.
Não sei como ele, com a sua ajuda, organizava todas as coisas. Sei, no entanto, que tinha bastante experiência, como bom soldado que fora, de safar-se da melhor maneira de situações embaraçosas, já que nós, os filhos, éramos cinco crianças agarrada às suas “perneiras”(o irmão mais velho contava com uns doze anos apenas).
Recordo-me, ainda, que nas horas de socego, durante a noite, ocasião em que as sombras mostravam-se indecisas ante a luz trêmula do lampião, era comum reunir os pequenos filhos e, como entretenimento, para “chamar” o sono, recorria às marchas e aos dobrados militares enquanto nossos pensamentos formavam cenários de belos momentos cívicos, oportunidade em que ouvíamos e acompanhávamos em coro:
“Capitão Caçula” – Nós somos da pátria a guarda,/Fiéis soldados,/ Por ela amados...
“Hino à Bandeira”- Salve lindo pendão da esperança/Salve símbolo augusto da paz...
“Canção do Marinheiro”- Qual cisne branco que em noite de lua/ Vai navegando num lago azul...
“Canção do Expedicionário”- Por mais terra que eu percorra/ Não permita Deus que eu morra /Sem que volte para lá...
Hoje, com grande orgulho, exibo na parede do escritório, `a altura desta escrivaninha, a espada com a qual ele serviu na Cavalaria Militar do antigo Distrito Federal, no Rio de Janeiro. Mandei-a cromar de modo que, agora, com o brazão da república à copa, acha-se toda cintilante ao longo do delgado corpo, fazendo-me imaginar que, a esta hora, no Reino de Deus, seu espírito também há de luzir posto que sempre procurou ser justo, solidário com o desvalido, bom filho, bom pai, bom cristão.
Coitado dos Animais!
O céu escureceu num repente e, logo em seguida, passou a metralhar com projéteis de gelo tudo o que se achava em baixo. Defendi os óculos e a vista segurando a aba do boné, e corri para ao marquise da padaria. Meus dedos sentiram o impacto dos cacos gelados, enquanto vidraças e pintura de carros sofriam avarias. O burro que conduzia cestos de verduras e legumes disparou corcoveando pelas ruas a espalhar hortaliças com o dono atrás do prejuízo. O cavalo amarrado no arbusto, em terreno descampado, escoiceou desesperado ante os petelecos gélidos nas orelhas, e conseguiu estancar a corda endoidecido.
Passado o fenômeno meteorológico, observei as pessoas a varrer as calçadas juntando vários montes de pedras de gelo – pilhas de quase um metro de altura – enquanto notava, também, vestígios de sangue nas costas das minhas mãos. Coitado dos animais!
Como em Berço de Ouro
Parece mesmo óbvio que toda criança nasce imaculada, sem influência psicológica, e hereditária. A existência é que vai influir em sua personalidade de modo positivo ou negativo, dependendo do meio em que viva.
Pensei nisso ao presenciar, outro dia, mais um drama da vida. É que, por acaso, indo ao Fórum de Campinas, importante e populosa cidade do Estado de São Paulo, a fim de obter determinado documento, presenciei, por obra do acaso, a chegada do camburão da polícia que estacionou ao lado do prédio conduzindo diversos presos. De imediato, os guardas providenciaram cordão de isolamentos e dispuseram-se em pontos estratégicos, devidamente armados. Era o momento em que os delinqüentes seriam levados a julgamento.
Na oportunidade, pessoas se aglomeravam junto ao cordão de isolamento para acenarem certamente a seus entes queridos, à medida em que os presos iam saindo da viatura.
Foi aí que notei, em meio àquela gente, certa mulher, aparentemente tranqüila, com um bebê nos braços. Ao virar-se, percebi-lhe nas faces abundantes lágrimas silenciosas, enquanto conservava junto ao peito a criança a dormir serena, como se achasse em berço de ouro...
Nesse instante, senti um como nó na garganta e, por que não dizê-lo, também a ameaçar-me sentidas lágrimas, solidário com a desdita de nosso semelhante.
Como Essa Gente Envelheceu!
Recentemente fui surpreendido por uma ligação de São Paulo, tarde da noite.
Quem me ligou fez certo suspense esperando que o identificasse. Acabou se revelando ao dizer que era “fulano de tal”, antigo companheiro de trabalho da agência bancária “há cinqüenta anos”...
Sem que eu ainda me houvesse recuperado da surpresa, sugeriu-me comparecer ao almoço de confraternização dos veteranos dispersos pelo país.
Claro que recebi com entusiasmo a idéia, pois sou um sujeito saudosista agarrado ao passado como alma penada que insiste em permanecer neste mundo, assim dizem.
No dia e hora marcados, achava-me na ante-sala do restaurante misturado a pessoas que também participavam do evento sem que eu as conhecesse, já que eram elementos de tempos mais recentes, mas também colegas de serviço aposentados.
Acabei sendo apresentado a um indivíduo da minha época, e foi aquela saudosa confraternização. Falaram: “Este aqui é o Horácio, lembras-te dele?” Admirado diante daquele senhor, custei a crer: “Você mais me parece ser o pai do Horácio que conheci, o artilheiro do nosso time!”
Outro cuja aparência me surpreendeu foi aquele moço de outros tempos de aspecto elegante, corpo de espadachim, cabelos e bigodes negros; agora apresenta-se encanecido, certa calvície, um tanto recurvado.
Ao perguntar por Sicrano, ausente do encontro, disseram achar-se muito bem nos seus oitenta e tantos anos. Admirei-me novamente: ”Mas como assim!?” É óbvio, disse-me alguém, se naquela oportunidade ele contava com mais de trinta, passados esses cinqüenta anos, assim como Freud a matemática explica.
Diversos “rapazes” daquele meu tempo não compareceram, uns já falecidos, outros impossibilitados, demais de paradeiro ignorado.
Os poucos daquela época ali presentes mostravam-se lúcidos e bastante motivados a combinar o próximo encontro dali a um ano, enquanto me punha a pensar: “Como essa gente envelhece!”
No retorno, uma vez em casa, consultei o “espelho, espelho meu se havia alguém mais conservado do que eu.” E o espelho limitou-se a me mostrar certas rugas no rosto, avanço de cabelos brancos onde não existe clareira na cabeça...
Até então eu não havia voltado bem a atenção para esses detalhes em mim, cobrança do tempo.
Então lembrei-me de uma das crônicas de Nélson Rodrigues crônicas quando se referiu a certos tipos de destaque, figuras públicas do passado: “Washington Luiz, por exemplo, já nasceu de colete, bengala e cavanhaque branco”...
Talvez, quem sabe, esteja acontecendo o mesmo comigo nesta vida, ou seja, também já nasci assim.
Estou até pensando em usar adesivo no meu carro: Sou trouxa, cumpro a Lei!
Alma Penada
Desde Criança ouço falar em alma penada, aquela que permanece vagando entre os vivos, desorientada, sem seguir o seu destino, assunto que me deixava amedrontado na hora de ir para a cama, à noite.
Hoje em dia, às vezes fico pensando que eu também tenho algo a ver com o sobrenatural. É que, saudosista que sou, vejo-me atraído, preso à memória, a querer sempre retornar aos lugares em que passei, bem como rever pessoas com quem convivi.
E na mais tenra idade, aos cinco anos, morei na cidade de Paulo de Frontin, Rio de Janeiro, lugar onde ainda pretendo visitar depois de várias décadas transcorridas. Dali guardo certas lembranças, embora tenha morado na localidade por pouco tempo: a liberdade de brincar com meus irmãos no grande quintal, colher morangos silvestres, assustar os sapos, temer as cobras. Naquele tempo a localidade não contava com certo progresso, tinha ainda algo a ver com roça.
Daquela época tenho marcada a triste recordação da figura de minha mãe seriamente adoentada, lívida, esquálida, tosse convulsiva, sendo conduzida por meu pai e mais alguém em cadeira de vime até conseguir condução de modo a seguir para o hospital, creio.
Foi também nessa época que eu passei a ouvir pelos rádios da vizinhança a possante e saudosa voz de Vicente Celestino. E quando ouço as suas gravações, sinto-me absorto, fixado no passado, sem tentar me afastar, igual alma penada.
Caminhada
Aceitei o atencioso convite (ou desafio?) em participar da caminhada de cerca de quinze quilômetros daqui de Varginha até as proximidades da cidade de Monsenhor Paulo, sendo o retorno através de diversos ônibus fretados. Meu objetivo era o de acompanhar os devotos até ao lugarejo denominado Fazenda Novo Mundo, onde seria celebrada missa na Igreja São Judas Tadeu / “Rural” pelo dia 28 de outubro, data consagrada ao referido santo.
Assim, com muito respeito, e cheio de espírito esportivo, segui os fiéis os quais se mostravam bastante motivados a pagarem, ante tamanho esforço, seus “tributos” pelas importantes graças alcançadas junto ao padroeiro. E fiquei surpreso, em determinado ponto, ao deparar com uma antiga ponte localizada por baixo da atual que passa sobre o Rio Verde, nas proximidades do Clube Campestre e da bem comentada mansão da “Tia Kátia” ...
A partida, contando com mais de cento e cinqüenta romeiros, aconteceu por volta das quinze horas em dia felizmente nublado Durante o percurso, e para quebrar a monotonia, dirigi-me a um grupo de animados adolescentes e também lancei o desafio: - O último a chegar ali adiante da curva é um “zé mané!” Foi uma divertida correria com boas risadas, assustando os que iam na frete.
A certo ponto da jornada, por lugares muitas vezes ermos, já me sentindo meio cansado, e para revigorar meu ânimo, passei a cantar baixinho, de modo a que ninguém percebesse, marchas e hinos militares que me vinham à lembrança: Canção do Marinheiro, Canção do Soldado, a Marselhesa, Hino à Bandeira, também aquela do filme A Ponte do Rio Kway... Desse modo punha-me a marchar intuitivamente em passos mais cadenciados só pensando na vitória final, ou seja, a chegada.
O pior, coisa que eu não contava, era certa subida íngreme de morro “ para cortar caminho”, segundo os guias. Nesse momento, admiti que não deveria ter participado de tal programa (de índio?) mais adequado para quem conta com mocidade, costume ou muita fé. E fora eu, não percebi ninguém que estivesse na terceira (ou última) idade.
Naquela subida inesperada, baixei a cabeça para não ver, e não desanimar, o quanto ainda faltaria para atingir o topo. Não se tratava propriamente de morro bem alto, mas uma subida penosa para mim, caso particular, depois de três horas de caminhada sem parar (moral em jogo). Na maior parte do tempo sentia-me como que sozinho na multidão, apesar de um ou outro conhecido aproximar-se de mim e consultar-me, gentilmente, como eu estava me sentindo. Aproveito para registrar meu agradecimento a tais espíritos solidários.
Afinal, chegamos bem próximos do objetivo visado, onde seria realizada a cerimônia religiosa. Nesse ponto, e por orientação do padre Rogério, o pessoal parou para esperar os retardatários de modo que todos estivessem juntos na hora da celebração da missa.
Depois de aguardarmos os demais por cerca de uns cinqüenta minutos, chegamos ao local pretendido; vejam quantos vieram depois de mim! A essa altura eu ansiava por qualquer banquinho que fosse, e divisei um junto ao treiler no canto mal iluminado, onde vendiam churrasquinhos no espeto, latas de refrigerantes e cervejas. Pedi ao homem que me servisse algo gelado desde que pudesse sentar-me, por instantes, naquele banquinho. Ali fiquei um tanto feliz, “posto em sossego” (como diz o poeta) por uns dois minutos apenas, já que me surgiu uma pobre idosa, de casaco meio surrado e da cor grená, dizendo que o lugar era dela e que se levantara para comprar pastel, ou coisa assim... Então ergui-me, de imediato, para ceder-lhe a vez ao tempo em que o homem dizia que eu poderia ali permanecer, já que a tal criatura era “pessoa da casa”. E a velha também acrescentou que não fazia questão e que eu poderia ficar à vontade. Apesar da má iluminação (já era noite, óbvio) ainda notei nela o rosto esbranquiçado a ressaltar o batom vermelho, resultado de maquiagem exagerada, coisa que não vem a ser da minha conta, devo reconhecer.
Assim que me afastei dali para estar presente na missa, percebi a tal senhora em meio a um grupo de pessoas e aproveitei, de passagem, para avisei a ela que deixara o banquinho meio escondido naquele local, de modo a que nenhum outro cansado o visse. E ela foi de imediato para lá.
Iniciada a missa ao ar livre, coloquei-me próximo à barraca que venderia fichas para as diversas atrações que aconteceriam logo após. De repente, aproximou-se de mim a tal idosa de rosto empoado e “agasalho meio surrado, da cor grená”, a dizer que aquele assento estava à minha disposição para quando terminasse a missa.
Agora, descansado, me ponho a imaginar que São Judas Tadeu, considerado o santo das causas impossíveis, venha conceder-me a graça de participar de demais caminhadas exitosas no decorrer da existência.
Carta
Paulo “Velho de Guerra”,
Ante a leitura feita por Maria Adélia, recentemente, por telefone, inspirada em tuas memórias (conforme datilografadas) acerca de reminiscências da infância, quase cheguei às lágrimas por recordar-me de certas passagens, principalmente a partir do ano de 1935, quando eu contava com cerca de cinco anos de idade. Ainda bem que eu me encontrava sozinho, no aposento, sem testemunha que me deixasse constrangido. Rogo-te que tenhas piedade deste meu coração fragilizado ante emoções , órgão esse que não tem condições de atender a qualquer necessitado de transplante, salvo se igualmente se tratar de alguém muito sentimental.
Dou-te parabéns pela memória lúcida, ao falar ou escrever.
Recordo-me também do episódio do transporte em jacá de vime, tipo casulo, tendo-te como visinho, do outro lado do jerico, quando ambos chorávamos em pânico ladeira abaixo, íngreme... Penso que eu chorava em solidariedade ao irmão amigo igualmente vítima de tal aventura. E penso: “Tortura nunca mais...”, só que, em casos assim, deixam-nos saudáveis recordações. Acredito que se tratava, por conveniência do momento, de improvisação daquele meio de transporte, pela a distância a ser percorrida, por exemplo. Enfim, qualquer fator que sugerisse criatividade na hora, e não brincadeira ou trote (este último só se fosse do animal ).
Recordo-me do retorno do Estado do Espírito Santo, de vapor, quando várias pessoas vomitavam à beça. E ao aproximarmo-nos do porto do Rio (Praça Mauá), divisei, ainda a certa distância, os imensos e esguios guindastes que mais me pareciam esqueletos de enormes girafas. Daí, inspirei-me ao escrever a crônica sob o título “Girafas em Fogo”, em cujo final procuro dar, como “tempero”, um toque um tanto hilariante.
Caro irmão, agora o ‘mais velho’, recebe um afetuoso abraço, extensivamente aos familiares, deste teu admirador desde os tempos em que distraias a todos com os teus desenhos e com o teu bom humor.
Girafas em Fogo
Certa coisa que tanto me impressionou, e se fixou em minha memória, foi uma espécie de visão surrealista do Rio de Janeiro quando o navio que nos conduzia, a mim e familiares, procedente de Vitória, Espírito Santo, aproximou-se do cais do porto. À medida em que a embarcação ia chegando, eu me punha a divisar certos corpos estranhos como se fossem esqueletos, de aspecto pré-históricos, mas que aos poucos iam adquirindo suas formas verdadeiras. Isso aconteceu há cerca de sete décadas, ocasião em que eu contava, ainda, com cerca de quatro anos de idade. E o que tanto me causara admiração naquela visão “fantástica” eram, apenas, os guindastes de aço, altos, a se moverem lentamente sob o efeito do sol que lhes criava tonalidades avermelhadas ao longo dos corpos esguios.
Hoje, ao me deparar, a cada passo, com alguma gravura ou mesmo comentários a respeito da famosa obra de arte surrealista “girafas em fogo”, mundialmente conhecida, de Salvador Dali, por incrível analogia vêm-me à lembrança aqueles imensos guindastes abrasados pelo sol. Só que estes têm base fixa no solo enquanto as girafas, aparentando inércia, nem se mexem. Se eu fosse o artista, autor do famoso quadro, representaria os animais em disparada louca a escoicearem pelo mundo afora ante as intensas chamas em seus dorsos.
Mas pensando bem, é óbvio que, aí, eu estaria a representar cenário real, e não mais um caso de surpreendente arte de impacto de estilo surrealista.
Os Miseráveis
Trata-se de obra clássica de Victor Hugo na qual o autor narra histórias baseadas do submundo em Paris nos idos de 1914, época em que a França vivia instabilidade política, econômica, e de conflito mundial.
O romance traz como figura principal um pobre miserável que foi pego em flagrante quando do roubo de um pão, acuado pela fome.
Não conformado com o cárcere, Jean Valjean procurava sempre evadir-se de modo que ao ser novamente detido e julgado via a pena aumentada, o que lhe valeu muitos anos de prisão.
Certa vez fugiu e, desesperado, à noite, debaixo de intenso temporal, por obra do destino bateu à porta de certa igreja, sendo acolhido pelo bondoso bispo que lhe providenciou refeição e alojamento dignos.
Ao acordar ainda pela madrugada, e sentindo voltarem-lhe as forças, o bandido partiu na calada furtando os dois castiçais de prata do altar. Mas logo adiante, sendo alvo de suspeita, foi abordado por milicianos e, após confessar, conduziram-no à presença do santo bispo. Este, pensando em dar mais uma oportunidade ao infeliz, se disse surpreso ante a devolução dos objetos uma vez que os havia presenteado, e de modo espontâneo, para que o homem tratasse de melhorar a sua situação tão precária. E ordenou aos guardas que se fossem e deixassem “seu hóspede” em paz...
E os capítulos da importante obra se desenrolam em sucessão de fatos, surgem tantos personagens a influir, por força das circunstâncias, na vida daquela criatura rude, que o homem acabou sofrendo espécie de metamorfose espiritual na personalidade. Desde a cena dos roubo dos castiçais, dado o tratamento e exemplo de humanidade de que fora alvo, começou ele a ver a vida de maneira diferente.
Como que por milagre, acabou transformando-se em cidadão de bem; autodidata, tornou-se sábio e passou a promover caridade, sendo bem quisto por onde passava.
Outro dia lembrei-me desse importante livro quando, à noite, debaixo de intensa chuva, alguém bateu-me à porta pedindo algum alimento. Despachei a criatura através mesmo da fresta da porta, notando sua aparência suspeita. Se eu o atendesse, teria de dar-lhe, à semelhança daquele santo religioso, alimento acompanhado de abrigo que a ocasião recomendava e que todo nosso semelhante merece, em igual situação. Então o pobre afastou-se lento, cabisbaixo, com seus andrajos encharcados.
Agora fico eu a sofrer este sentimento de culpa porém resguardado, como que entrincheirado, a preservar a segurança da família.
As Religiosas Hão de Corar
Os conjuntos de forró muito animam as festas com ritmos bastante contagiantes, sem dúvida. Os pares dançam o tempo todo, e quem não tem companhia fica em seu canto balançando o corpo com entusiasmo. Nota-se que as pessoas que conhecem a letra ou refrões acompanham cantando, inclusive crianças.
Todavia, quem não estiver participando da dança e ficar só apreciando, e prestar atenção nas letras, nas rimas, há de observar, muitas vezes, a apelação do compositor ao criar, de modo explícito, palavras de baixo calão, chocantes, sem censura alguma, de sorte a conseguir sucesso por se tratar de modismo.
Poderiam esses inspirados indivíduos não descerem a tão baixo nível, principalmente em ambiente incompatível com esses chamados forró-pornô.
Acontece até serem contratados para animar festas religiosas, de finalidade filantrópica quando, “sem ver a quem”, não estão nem aí para qualquer tipo de crítica. No meu caso, mesmo considerando meu berço familiar, minha educação tradicional, hoje em dia sinto-me cobra criada e essas coisas não me afetam, particularmente.
Há quem defenda que palavrão está é na cabeça de pessoas hipócritas, e que palavrão verdadeiro são as falcatruas, os cambalachos, que têm ocorrido nos diversos escalões do governo, considerando-se o que vem sendo divulgado. Mas tais casos lamentáveis por parte de uns e outros não vêm a ser motivo para se generalizar, dando a impressão de querer igualar por baixo.
Entretanto quero crer que, de prático, nesse caso da pornografia tão divulgada assim, sem cerimônia, é que a palavra chula tende a ser banalizada de tanto cair no uso, como ocorre com certas gírias que acabam se consagrando e se tornam usadas a qualquer hora, em qualquer ambiente, sem causarem impacto.
Mesmo que eu venha a ser tachado de moralista, careta, deixo nestas linhas o meu protesto na crença de que, pelo menos por enquanto, se prestarem a atenção nas letras dos sucessos do forró-pornô, principalmente por ocasião das festas promovidas pelas igrejas, as religiosas hão de corar.
Baba de Quiabo
“Baba de quiabo” vem a uma ser expressão jocosa mais de carioca, penso.
Significa que se um sujeito quer levar o outro na conversa, com objetivo de convencer o cara, usa de certo ardil para ganhar proveito. Diz-se também ser a “psicologia da cegonha”, ao levar uns e outros no bico...
Precisei disso outro dia de modo a conseguir vantagem. É que certa casa na vizinhança conta com uma frondosa mangueira bem carregada. Alguns frutos despencam lá do alto e caem no chão do estacionamento público, com risco de provocar possíveis mossas na lataria dos carros estacionados naquele local.
Eu fico na expectativa igual a raposa da fábula que se punha de olho nas uvas.
Mas além de o muro ser muito alto, já passou o meu tempo de roubar frutas dos vizinhos desde que levei grande lição. Foi quando, certa vez, quando garoto, animado pela molecada, também pulei no quintal de um homem de maus bofes que deu o “flagra” e correu furioso atrás de mim, por ser o que se achava mais próximo dele. Se me pegasse, seria aquele puxão de orelhas.
Conforme eu estava contando, e voltando a falar sobre a atual casa vizinha, percebi uma placa dizendo que ali se acha estabelecido um cirurgião-dentista.
Então bati à porta com a desculpa de obter certas informações sobre orçamento dentário. Quem me atendeu foi a simpática governanta dizendo que o patrão se encontrava em viagem. Perguntou, ainda, se eu estaria com algum problema porque, se fosse o caso, ela teria como entrar em contato com o doutor. Aí falei que poderia aguardar tranqüilamente a volta dele, sem pressa alguma e, logo em seguida, entrei em outro assunto. Disse a ela que, por obra do acaso, ao estacionar o carro, vi uma manga caída no chão e, ao provar, achei-a bem saborosa. Então a dona indagou-me se eu gostaria de ganhar algumas. Sem vacilar, logo que ela pronunciou a última sílaba da palavra “ganhar”, disse-lhe que sim se não causasse incômodo etc e tal...
Aguardei uns instantes e logo veio a senhora com uma sacola cheia.
Pular muro? To fora, gente!
Buquês de Hortências
Foi uma noite de gala a apresentação da Orquestra de Câmara de Stuttgart em nossa cidade, programação que, sem dúvida, enobrece qualquer comunidade.
Antigamente, na chamada bela época, as pessoas compareciam a tais eventos procurando trajar-se de maneira protocolar, com muita etiqueta, quando as mulheres apresentavam-se em vestidos de gala que se completavam com o uso de vistosos chapéus. Já os homens não dispensavam coletes e até mesmo bengalas, detalhes que contribuiam para caracterizar os trajes a rigor ; tudo raro hoje em dia.
O público lotou as dependências do teatro prestigiando o acontecimento, não poupando calorosos aplausos aos internacionais e renomados músicos.
Por minha vez, creio que não fiz papel feio no meu traje esporte-fino, já que predominava no ambiente a informalidade. Ainda bem que não vi ninguém de roupa estilo jeans e tênis, coisa bastante popular atualmente; era só o que faltava.
Interessante que, em meio à concorrida platéia, achavam-se presentes diversas senhoras a “camuflarem” os cabelos brancos com leve tintura em tom lilás, de maneira que me vinham à lembrança delicados buquês de hortências.
Entretanto, o que me chamou mais a atenção foi um casal de aparência bem clássica no modo de tajar : o cavalheiro, de bela gravata borboleta e elegante casaco, a exibir costeletas e bigode grisalhos, fazendo-se acompanhar de fina dama em vestido longo, modelo que apresentava sensual decote, o único da ocasião ao que me parece.
Cachorros Esquisitos
Nas minhas chegadas de porta em porta na coleta de mantimentos a serem doados a certa entidade filantrópica, da qual sou voluntário, é comum deparar-me com cachorros nas casas visitadas, conforme acontece com os carteiros. Aí é que o bicho pega...
Há uma residência em determinado endereço em que existe um cão de porte médio, pelo raso, amarronzado e olhos cinza-claros que, ao me aproximar, estica feroz a fina correia em que se acha preso e tenta investir contra mim; nem sei se se trata de um vira-lata.
Os donos dizem que “é apenas fita por parte dele e que, uma vez solto, não faz nada”.
Meio incrédulo, guardo distância estratégica enquanto espero ser atendido. Mas fico apreensivo quando eu e ele estamos como que cara-a-cara, sendo o muro baixinho.
Experimentei, ultimamente, ganhar simpatia do animal. Passei a cantar para ele canções nostálgicas, do meu tempo: Boemia, Carinhoso, Camisola do Dia... E o engraçado é que ele pára de latir, vai amansando, põe-se em sossego balançando a cauda de modo amistoso. Então, só com a boca entreaberta, dá a impressão de estar a sorrir feliz.
Outro cachorro de procedimento esquisito, e de menor porte do que o outro, e não menos hostil, foi aquele que, tão logo viu que me aproximava, ficou a rosnar furioso, cheio de salivação, “com o pelo do dorso mais eriçado que as cerdas bravas do javali”, como diria Nélson Rodrigues. E, nesse estado, esbarrava na grade ameaçando sair para atacar-me. No caso, nem me animei a apelar para o repertório das antigas canções.
Por fim o dono chegou para atender-me, momento em que me afastei um pouco do ponto em que me achava, parado igual estátua, de maneira a poder receber a doação. Aí foi que o cachorro resolveu ultrapassar o vão da grade, passar por mim indiferente e ganhar a rua balançando o rabo de modo alegre. Creio que eu o estava era impedindo de fugir, obstruindo aquele espaço por onde costuma evadir-se, pelo que se deduz.
E porque ele não falou logo?
São cachorros esquisitos, concordam?...
Caminhada
Aceitei o atencioso convite (ou desafio?) em participar da caminhada de cerca de quinze quilômetros daqui de Varginha até as proximidades da cidade de Monsenhor Paulo, em louvor a São Judas Tadeu, sendo o retorno através de diversos ônibus fretados. Meu objetivo era o de acompanhar os devotos até ao lugarejo denominado Fazenda Novo Mundo, onde seria celebrada missa na Igreja São Judas Tadeu / “Rural” pelo dia 28 de outubro, data consagrada ao referido santo.
Assim, com muito respeito, e cheio de espírito esportivo, segui os fiéis os quais se mostravam bastante motivados a pagarem, ante tamanho esforço, seus “tributos” pelas importantes graças alcançadas junto ao padroeiro.
Fiquei até surpreso, em determinado ponto, ao deparar com uma antiga ponte localizada por baixo da atual que passa sobre o Rio Verde, nas proximidades do Clube Campestre e da bem comentada mansão da “Tia Kátia” ...
A partida, contando com mais de cento e cinqüenta romeiros, aconteceu por volta das quinze horas em dia felizmente nublado Durante o percurso, e para quebrar a monotonia, dirigi-me a um grupo de animados adolescentes e também lancei o desafio: - O último a chegar ali adiante da curva é um “zé mané!” Foi uma divertida correria com boas risadas, assustando os que iam na frete.
A certo ponto da jornada, por lugares muitas vezes ermos, já me sentindo meio cansado, e para revigorar meu ânimo, passei a cantar baixinho, de modo a que ninguém percebesse, hinos e dobrados militares que me vinham à lembrança: Canção do Marinheiro, Canção do Soldado, a Marselhesa, Hino à Bandeira, também aquela do filme “A Ponte do Rio Kway...” Desse modo punha-me a marchar intuitivamente em passos mais cadenciados só pensando na vitória final, ou seja, a chegada.
O pior, coisa que eu não contava, era certa subida íngreme de morro “ para cortar caminho”, segundo os guias. Nesse momento, admiti que não deveria ter participado de tal programa (de índio?) mais adequado para quem conta com mocidade, costume ou muita fé. E fora eu, não percebi ninguém que estivesse na terceira (ou última) idade.
Naquela subida inesperada, baixei a cabeça para não ver, e não desanimar, o quanto ainda faltaria para atingir o topo. Não se tratava propriamente de morro bem alto, mas uma subida penosa para mim, caso particular, depois de três horas de caminhada sem parar (moral em jogo). Na maior parte do tempo sentia-me como que sozinho na multidão, apesar de um ou outro conhecido aproximar-se de mim e consultar-me, gentilmente, como eu estava me sentindo. Aproveito para registrar meu agradecimento a tais espíritos solidários.
Afinal, chegamos bem próximos do objetivo visado, onde seria realizada a cerimônia religiosa. Nesse ponto, e por orientação do padre Rogério, o pessoal parou para esperar os retardatários de modo que todos estivessem juntos na hora da celebração da missa.
Depois de aguardarmos os demais por cerca de uns cinqüenta minutos, chegamos ao local pretendido; vejam quantos vieram depois de mim! A essa altura eu ansiava por qualquer banquinho que fosse, e divisei um junto ao treiler no canto mal iluminado, onde vendiam churrasquinhos no espeto, latas de refrigerantes e cervejas. Pedi ao homem que me servisse algo gelado desde que pudesse sentar-me, por instantes, naquele banquinho. Ali fiquei um tanto feliz, “posto em sossego” (como diz o poeta) por uns dois minutos apenas, já que me surgiu uma pobre idosa, de casaco meio surrado e da cor grená, dizendo que o lugar era dela e que se levantara para comprar pastel, ou coisa assim... Então ergui-me, de imediato, para ceder-lhe a vez ao tempo em que o homem dizia que eu poderia ali permanecer, já que a tal criatura era “pessoa da casa”. E a velha também acrescentou que não fazia questão e que eu poderia ficar à vontade. Apesar da má iluminação (já era noite, óbvio) ainda notei nela o rosto esbranquiçado a ressaltar o batom vermelho, resultado de maquiagem exagerada, coisa que não vem a ser da minha conta, devo reconhecer.
Assim que me afastei dali para estar presente na missa, percebi a tal senhora em meio a um grupo de pessoas e aproveitei, de passagem, para avisar a ela que deixara o banquinho meio escondido naquele local, de modo a que nenhum outro cansado o visse. E ela seguiu, de imediato, para lá.
Iniciada a missa ao ar livre, coloquei-me próximo à barraca que venderia fichas para as diversas atrações que aconteceriam logo após. De repente, aproximou-se de mim a tal idosa de rosto empoado e “agasalho meio surrado, da cor grená”, a dizer que aquele assento estava à minha disposição para quando terminasse a missa. No momento, dada a profusão de besouros a esvoaçarem ante as diversa lâmpadas colocadas em longos fios esticados ao ar livre, e a presença de corujas em pontos estratégicos atentas às presas em potencial, aquela ao mulher “mascarada”, chegava a passar-me algo de lúgubre.
Agora, descansado, me ponho a imaginar que São Judas Tadeu, considerado o santo das causas impossíveis, venha conceder-me a graça de participar de demais caminhadas exitosas no decorrer da existência.
Carta a um Velho Parente - (Reminiscências)
Estimado e “velho” tio Florentino,
Recebi sua ansiada carta e, como sempre, a saudade sacudiu-me o coração ameaçando-me acomodadas lágrimas. Isso acontece porque, invariavelmente, associo a sua figura à de meu venerado pai, o que se justifica ao levarmos em consideração, além dos laços familiares e dos traços fisionômicos, a afinidade filosófica e a sensibilidade poética de ambos.
Em conseqüência, e por sucessão de pensamentos, vem-me à memória aquele passado ora tão distante em que convivíamos todos nós de mãos dadas, solidários nos mesmos problemas, morando naquela modesta casa em Sepetiba, sendo meu pai viúvo.
Não sei como ele, com a sua ajuda, organizava todas as coisas. Sei, no entanto, que tinha bastante experiência, como bom soldado que fora, de safar-se da melhor maneira de situações embaraçosas, já que nós, os filhos, éramos cinco crianças agarrada às suas “perneiras”(o irmão mais velho contava com uns doze anos apenas).
Recordo-me, ainda, que nas horas de socego, durante a noite, ocasião em que as sombras mostravam-se indecisas ante a luz trêmula do lampião, era comum reunir os pequenos filhos e, como entretenimento, para “chamar” o sono, recorria às marchas e aos dobrados militares enquanto nossos pensamentos formavam cenários de belos momentos cívicos, oportunidade em que ouvíamos e acompanhávamos em coro:
“Capitão Caçula” – Nós somos da pátria a guarda,/Fiéis soldados,/ Por ela amados...
“Hino à Bandeira”- Salve lindo pendão da esperança/Salve símbolo augusto da paz...
“Canção do Marinheiro”- Qual cisne branco que em noite de lua/ Vai navegando num lago azul...
“Canção do Expedicionário”- Por mais terra que eu percorra/ Não permita Deus que eu morra /Sem que volte para lá...
Hoje, com grande orgulho, exibo na parede do escritório, `a altura desta escrivaninha, a espada com a qual ele serviu na Cavalaria Militar do antigo Distrito Federal, no Rio de Janeiro. Mandei-a cromar de modo que, agora, com o brazão da república à copa, acha-se toda cintilante ao longo do delgado corpo, fazendo-me imaginar que, a esta hora, no Reino de Deus, seu espírito também há de luzir posto que sempre procurou ser justo, solidário com o desvalido, bom filho, bom pai, bom cristão.
Coitado dos Animais!
O céu escureceu num repente e, logo em seguida, passou a metralhar com projéteis de gelo tudo o que se achava em baixo. Defendi os óculos e a vista segurando a aba do boné, e corri para ao marquise da padaria. Meus dedos sentiram o impacto dos cacos gelados, enquanto vidraças e pintura de carros sofriam avarias. O burro que conduzia cestos de verduras e legumes disparou corcoveando pelas ruas a espalhar hortaliças com o dono atrás do prejuízo. O cavalo amarrado no arbusto, em terreno descampado, escoiceou desesperado ante os petelecos gélidos nas orelhas, e conseguiu estancar a corda endoidecido.
Passado o fenômeno meteorológico, observei as pessoas a varrer as calçadas juntando vários montes de pedras de gelo – pilhas de quase um metro de altura – enquanto notava, também, vestígios de sangue nas costas das minhas mãos. Coitado dos animais!
Como em Berço de Ouro
Parece mesmo óbvio que toda criança nasce imaculada, sem influência psicológica, e hereditária. A existência é que vai influir em sua personalidade de modo positivo ou negativo, dependendo do meio em que viva.
Pensei nisso ao presenciar, outro dia, mais um drama da vida. É que, por acaso, indo ao Fórum de Campinas, importante e populosa cidade do Estado de São Paulo, a fim de obter determinado documento, presenciei, por obra do acaso, a chegada do camburão da polícia que estacionou ao lado do prédio conduzindo diversos presos. De imediato, os guardas providenciaram cordão de isolamentos e dispuseram-se em pontos estratégicos, devidamente armados. Era o momento em que os delinqüentes seriam levados a julgamento.
Na oportunidade, pessoas se aglomeravam junto ao cordão de isolamento para acenarem certamente a seus entes queridos, à medida em que os presos iam saindo da viatura.
Foi aí que notei, em meio àquela gente, certa mulher, aparentemente tranqüila, com um bebê nos braços. Ao virar-se, percebi-lhe nas faces abundantes lágrimas silenciosas, enquanto conservava junto ao peito a criança a dormir serena, como se achasse em berço de ouro...
Nesse instante, senti um como nó na garganta e, por que não dizê-lo, também a ameaçar-me sentidas lágrimas, solidário com a desdita de nosso semelhante.
Como Essa Gente Envelheceu!
Recentemente fui surpreendido por uma ligação de São Paulo, tarde da noite.
Quem me ligou fez certo suspense esperando que o identificasse. Acabou se revelando ao dizer que era “fulano de tal”, antigo companheiro de trabalho da agência bancária “há cinqüenta anos”...
Sem que eu ainda me houvesse recuperado da surpresa, sugeriu-me comparecer ao almoço de confraternização dos veteranos dispersos pelo país.
Claro que recebi com entusiasmo a idéia, pois sou um sujeito saudosista agarrado ao passado como alma penada que insiste em permanecer neste mundo, assim dizem.
No dia e hora marcados, achava-me na ante-sala do restaurante misturado a pessoas que também participavam do evento sem que eu as conhecesse, já que eram elementos de tempos mais recentes, mas também colegas de serviço aposentados.
Acabei sendo apresentado a um indivíduo da minha época, e foi aquela saudosa confraternização. Falaram: “Este aqui é o Horácio, lembras-te dele?” Admirado diante daquele senhor, custei a crer: “Você mais me parece ser o pai do Horácio que conheci, o artilheiro do nosso time!”
Outro cuja aparência me surpreendeu foi aquele moço de outros tempos de aspecto elegante, corpo de espadachim, cabelos e bigodes negros; agora apresenta-se encanecido, certa calvície, um tanto recurvado.
Ao perguntar por Sicrano, ausente do encontro, disseram achar-se muito bem nos seus oitenta e tantos anos. Admirei-me novamente: ”Mas como assim!?” É óbvio, disse-me alguém, se naquela oportunidade ele contava com mais de trinta, passados esses cinqüenta anos, assim como Freud a matemática explica.
Diversos “rapazes” daquele meu tempo não compareceram, uns já falecidos, outros impossibilitados, demais de paradeiro ignorado.
Os poucos daquela época ali presentes mostravam-se lúcidos e bastante motivados a combinar o próximo encontro dali a um ano, enquanto me punha a pensar: “Como essa gente envelhece!”
No retorno, uma vez em casa, consultei o “espelho, espelho meu se havia alguém mais conservado do que eu.” E o espelho limitou-se a me mostrar certas rugas no rosto, avanço de cabelos brancos onde não existe clareira na cabeça...
Até então eu não havia voltado bem a atenção para esses detalhes em mim, cobrança do tempo.
Então lembrei-me de uma das crônicas de Nélson Rodrigues crônicas quando se referiu a certos tipos de destaque, figuras públicas do passado: “Washington Luiz, por exemplo, já nasceu de colete, bengala e cavanhaque branco”...
Talvez, quem sabe, esteja acontecendo o mesmo comigo nesta vida, ou seja, também já nasci assim.
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