Crônicas III

Complicando a Ecologia
A menina disse-me que haveria uma festinha na escola e que os alunos, para obterem boa nota, deveriam levar algum bicho.
A promoção tinha por fim sensibilizar as crianças quanto ao problema ecológico, sendo o movimento organizado para os alunos do pré-primário.
Aí, no lugar de orientar minha filha, resolvi eu mesmo pôr mãos à obra, onde começou o meu erro.
Arranjei pequena gaiola, pedi à mulher que a enfeitasse de flores para a menina desfilar junto à mesa julgadora com muito garbo.
Pondo a criatividade em funcionamento, fui ao viveiro, peguei um periquito, depois de várias tentativas, já que ele esvoaçava entre os demais pássaros sem entender que meu intuito era, apenas, fazer dele alvo dos maiores elogios na festa. E o danado parecia ter a especialidade de picar-me a cutícula da unha enquanto o prendia com uma das mãos e, com a outra, passava-lhe cola sobre o corpo de modo a jogar-lhe, por cima, uma borrifada de purpurina. Eu esperava que o efeito, assim, teria algo de inédito, pois a ave ficaria brilhante e multicolorida, igual ao beija-flor, tendo, sobre este, a vantagem de não ter bico longo, e afinado, e tão somente recurvado e rombudo. Se é que isso venha a ser realmente vantagem; não sei bem. Depende da finalidade do uso, é óbvio; se for para debulhar pequenos grãos, tudo bem. Agora, se for para extrair o néctar das flores, não dá certo ...
Mas como ia dizendo, começaram a surgir imprevistos: a cola deu de secar no corpo do pássaro a ponto de eriçar-lhe as penas, o que fê-lo ficar a um canto, jururu, como se sentisse humilhado, diferente dos outros.
E o que passou a me preocupar é que um fragmento do pó, isto é, da purpurina, caiu-lhe no olho e eu teria que remover o corpo estranho antes que o bichinho ficasse com a vista irritada, conforme eu já me achava a essa altura.
O trabalho de modificar a aparência do pássaro não deu certo. Abandonei-o no viveiro com as penas “mais eriçadas que as cerdas bravas do javali”.
Substituí-o por outro e com diferente idéia criativa: Menina! Vai buscar o batom da mamãe depressa, antes que ela chegue. E a garota que até então só estava a acompanhar o meu esforço, saiu parecendo não acreditar muito na tarefa que passara a ser do pai, isto é, a de apresentar-se com brilho à comissão escolar.
Quando voltou da festa, perguntei-lhe como se fora. Disse-me que o vencedor foi um coleguinha que apresentou-se com um belo tucano.
Vejam vocês. Jamais eu conseguiria transformar um pobre periquito a ponto de superar o tucano em beleza. Só mesmo a própria Natureza, se assim houvesse programado.
E a menina acrescentou que outro amiguinho tinha levado, apenas, uma caixa de fósforos dizendo aos professores que ali dentro havia uma formiga. E o que disseram os professores? perguntei. Eles acharam graça, riram e deram nota ao garoto - disse. E concluiu: Papai, da próxima vez, deixa que eu mesma faça sem muita complicação.
Tempos depois, verificando vestígio de penugem no cosmético, surpresa a mulher gritou lá do quarto: Quem passou o meu batom no periquito? Foi você, homem! Neste ponto reagi de imediato: Fala baixo, mulher; os vizinhos não precisam saber ...

Conselhos
Conheço um sujeito, metido a expert no assunto, que diz ter um amigo médico que aconselha a ingestão de água-tônica para, entre outras vantagens, prevenir-se contra cãibras.
E diz mais: essa água contém quinino e suaviza o efeito do álcool. Vejam aos benefícios, continua ele: quinino contém os sais da quinina”, alcalóide vegetal extraído da casca da quina. É uma base diácida, de sabor muito amargo e reação alcalina; seus coridratos e sulfatos são febrífugos e indicados no tratamento da malária, segundo dicionário.
Acontece, continua o expert, se o cidadão se exceder e sair meio cambaleante da mesa do bar, tem que ter o cuidado de não se desequilibrar, cair e bater com a cabeça na quina da mesa. Aí o problema não será da quinina e sim da quina.
TROVA
Não exceda, use a cabeça
Quando for no bar da esquina
P’ra não tropeçar na mesa
Indo com a testa na quina.

Constrangimento Percebido
Certo cidadão conhecido contou-me que precisou comparecer a importante reunião para tratar assunto da classe empresaria da qual faz parte. Mas como se atrasou, chegou no prédio onde ocorreria o encontro, em determinada sala, já com várias pessoas presentes, mas disse que, ao acomodar-se discretamente na cadeira, “bem lá atrás”, estranhou o tipo de gente participante, ou seja, não viu no auditório alguém conhecido.
Logo que o orador da vez pôs-se a falar, percebeu que o assunto tratado não era aquele que esperava; viu, então, que entrara no ambiente errado.
Daí, conforme entrara saiu discretamente e , por fim, acabou por encontrar o local correto de seu interesse.
Tempos decorridos, esquecendo-se de que pagara aquele mico em haver ingressado em reunião alheia, onde não fora convidado, foi tomado de surpresa ao ser abordado na rua por um estranho que lhe disse: - Companheiro de desdita, percebi e compreendo o seu constrangimento naquele dia em que, de repente, resolveu afastar-se discretamente da nossa reunião. Eu também fiquei muito encabulado no primeiro encontro da Associação dos Alcoólatras Anônimos, porém fui bastante forte, perseverante e venci. Siga o meu exemplo, colega.


O Salto Alto
Chamou-me a atenção aquela mulher vistosa a caminhar pela calçada percorrendo as lojas comerciais. Todavia, percebi que em suas elegantes sandálias cor de vinho, um dos pés apresentava o salto alto ligeiramente inclinado mais para o lado esquerdo do calcanhar, como ponteiro de relógio a marcar qualquer hora e uns trinta e poucos minutos.
Creio que fui o único transeunte a ficar parado olhando os calcanhares da criatura que se afastava a passos lentos até dobrar a esquina, com aquele salto fora de prumo.
E pensar que existe gente vaidosa, ou de espírito consumista, que possui verdadeira coleção de calçados...
Todavia, prometo que algum dia arrumo mais o que fazer ao invés de ficar prestando atenção em pequenos detalhes da vida alheia.
Contudo tenho para mim que aquilo que tanto me intrigou, ao ver o calçado defeituoso da tal mulher, parece-me como que um certeiro tiro em qualquer elegância.

O Sapo e o Goleiro
Joaquim estava em dia inspirado e de muita sorte; quando não defendia, as bolas batiam nas traves. Ao seu time só a vitória interessava, pois mesmo em caso de empate a sua equipe seria rebaixada para a ‘temível’ terceira divisão, espécie de purgatório.
Embora se tratasse de campeonato de “jogos de várzea”, a coisa era levada a sério, segundo se comenta. O time do goleiro Joaquim vencia por um a zero e a peleja estava no final, já nos descontos. Aí, não se sabe de onde, surgiu enorme sapo vindo em direção do nosso herói, momento em que um atacante adversário avançava ameaçador. Joaquim hesitou um pouco e, não vendo melhor alternativa, afastou-se para a trave oposta. Conclusão: goleiro para um lado, bola e sapo para outro.
A reportagem quis saber a razão de tanto medo ante o pobre batráquio, e a resposta foi: “Se a perereca, que é bicho pequeno, quando gruda na pele só larga em noite de trovoada, conforme dizem, imaginem um sapo daquele tamanho... Não larga nunca mais!

O Sufoco do Candidato
Ele candidatou-se a cargo eletivo e teve de “correr atrás”, por saber que a disputa seria difícil, e por se considerar marinheiro de primeira viagem para o caso.
Contou-me que percorreu muitos bairros da cidade e também as adjacências mais afastadas do município até mesmo em lombo de cavalo, experiência pela qual jamais havia passado, muitas vezes em busca de contato com os bóias-frias.
Na maior parte das vezes, era recebido com grande simpatia pelas pessoas que lhe ofereciam hospitaleiro cafezinho, bebida ora fraca, ora fria ou mesmo bem adocicada, comenta.
Ao apresentar a sua plataforma política às pessoas, esforçando-se por mostrar-se um candidato bem intencionado, confiável, procurava sondar o que a comunidade mais necessitava, mais reivindicava, de modo a procurar atender a todos conforme as possibilidades, se eleito fosse.
Entre os vários pedidos que ouvia, que faziam sentido, era comum a solicitação de remédios, empregos e... uniformes para os times de futebol das localidades. Houve casos de líderes argumentarem que alguém já lhes prometera jogo completo de uniformes, “e gostariam de saber o que o concorrente poderia dar a mais”.
Quando ele bateu também à nossa porta para conversar com “velhos amigos”, e pedir votos da família, nem tivemos coragem de oferecer-lhe café para evitar possível constrangimento na recusa, por imaginarmos que o coitado já estaria farta da bebida; oferecemos-lhe, sim, uma fatia de torta de morango, o que ele “adorou” perguntando se poderia repetir mais um pedaço.
Tempos depois, encontrando-o na rua, e uma vez que não chegou a ser eleito, veio a mim e tocou no assunto: Não cheguei a ser eleito, mas guardo na lembrança os inúmeros cafezinhos que me ofereceram por aí, bem como aquela torta de morango “que valeu a pena tanto esforço...“.

Curtas I
- Quando o chapéu nos cai
O amigo A. Mourão conta que, quando criança, certa vez participou de festa escolar em que um grupo de alunos encenava dança folclórica, vestidos a caráter.
De repente, continuou, em dado movimento da dança, viu o seu chapéu, em forma de cone, escapar-se da cabeça e rolar pelo chão, um tanto afastado do seu alcance.
Diz que, na hora, ficou hesitante se interrompia a dança para pegar o chapéu ou se aguardaria o intervalo...
Foi aí que passei a filosofar: Meu caro, muitas vezes, nos espetáculos de nossas vidas, sentimos cair o chapéu de nossas fantasias, e não nos é dado o direito de vacilar, tendo que tomar decisões imediatas.

- Qual a solução, então?
A máquina (terminal de caixa) recusava fornecer-me dinheiro. E dizia a tela: “Terminal inoperante (?)”.
A clientela do banco, também com igual problema, começava a congestionar o saguão da agência.
Perguntei ao funcionário atendente o que estava a ocorrer e a que horas eu deveria voltar para saque. Ele, muito atencioso, procurou explicar que se tratava, no momento, da posição do satélite pois não estava favorável ainda etc e tal... Foi o que entendi.
Então insisti: Companheiro, qual a solução então ? Devo voltar daqui a pouco ou subir até lá e dar uma viradinha nesse tal de satélite?

- O canto da cigarra
Certo alguém, outro dia, participando de animado grupo de amigos no bar do clube, já devidamente turbinado, empolgado com a chegada da primavera, e uma vez tomado de inspiração poética, sugeriu ao nosso fotógrafo que não deixasse de clicar, também, o canto da cigarra...

- No restaurante
Depois de aguardar um bom tempo para ser atendido, reclamei com o garçom que o meu bife se achava ainda cru, sangrando ao cortar. E falei: Ou o amigo leva de volta para a cozinha ou me arruma “Band-Aid”(ou algodão com esparadrapo) urgente de modo a estancar a hemorragia!



Curtas II
PARTE DE DENTADURA
Alguém teria deixado ali num canto do chão, bem na entrada da sede campestre do clube, parte de uma dentadura. Tratava-se da parte superior do objeto, sozinha, solitária, à disposição de algumas formigas. A peça parecia representar apenas um meio sorriso, sem o respectivo dono, cena surrealista.
Por conta de possível folclore, dizem que certos candidatos a cargos eletivos apelam para a simplicidade de uns e outros usando de artifícios com o objetivo de garantir os eleitores. E prometem aos mesmos, se eleitos, presentearem-nos com dentaduras ou par de sapatos. Para tanto, condicionam a oferta de maneira parcial, ou seja, adiantam-lhes uma parte da coisa prometida conforme o pedido: um pé de sapato ou um pedaço de dentadura, de sorte a inteirar o artigo depois, conforme o resultado das eleições.
Pelo que se pode imaginar, no caso, o candidato possivelmente não teria sido eleito; e a metade da dentadura abandonada ali naquele chão fica como a rir não sei de quê; deste comentário é que não há de ser.
E se, às vezes, certos cronistas de casos policiais relatam que o corpo de determinada vítima foi encontrado ao relento com a boca cheia de formiga, na presente história os insetos haveriam de dar por falta não só do corpo como, principalmente, da boca do infeliz.

O CROCODILO DE UBERABA
Em escavações acontecidas em Uberaba, paleontólogos acabam de descobrir fósseis de crocodilo pré-historico.
Pelas observações, constataram tratar-se de um feroz carnívoro de hábito terrestre existente há milhões de anos.
E os pesquisadores conseguiram reconstituir a carcaça do animal mostrando o aspecto apavorante do bicho!
Agora vou contar para vocês: se esse crocodilo mineiro representava em vida tudo isso, pode-se concluir o que cawboy australiano, o bravo Crocodilo Dante, não estava com essa bola toda não.

O SALTO ALTO
Chamou-me a atenção aquela mulher vistosa a caminhar pela calçada percorrendo as lojas comerciais. Todavia, percebi que em suas elegantes sandálias cor de vinho, um dos pés apresentava o salto alto ligeiramente inclinado mais para o lado esquerdo do calcanhar, como ponteiro de relógio a marcar qualquer hora e uns trinta e poucos minutos.
Creio que fui o único transeunte a ficar parado olhando os calcanhares da criatura que se afastava a passos lentos até dobrar a esquina, com aquele salto fora de prumo.
E pensar que existe gente vaidosa, ou de espírito consumista, que possui verdadeira coleção de calçados...
Todavia, prometo que algum dia arrumo mais o que fazer ao invés de ficar prestando atenção em pequenos detalhes da vida alheia.
Contudo tenho para mim que aquilo que tanto me intrigou, ao ver o calçado defeituoso da tal mulher, parece-me como que um certeiro tiro em qualquer elegância.

Da Agressividade ao Virtuosismo
O rapaz estava a fim de preparar-se fisicamente “para o que desse e viesse”. Ingressou em certa academia de luta marcial de modo a tornar-se apto, em devida forma física, para possível eventualidade. Todavia, parece-nos que escolheu errado a sua tentativa de realização pessoal. O instrutor, embora faixa-preta na modalidade, não era um profissional de bom senso. Mais fazia dos alunos verdadeiros sacos-de-pancada sob a alegação de que “era importante aprender apanhar também...” E castigava com vigor, sem dó, os alunos, candidatos que sempre almejavam trocar de faixa por ocasião dos exames periódicos.
Esse nosso herói, numa das aulas, após sofrer diversos golpes contundentes por parte do “mestre”, achava-se meio nocauteado, indefeso, embora ainda em pé. E o ignorante professor preparava, ainda, mais um golpe quando os demais alunos, unânimes, intervieram em socorro do coitado. E o moço foi afastando-se aos poucos da academia e acabou sumindo de vez.
Certa ocasião, ao ser visto e abordado na rua por um ex-companheiro, justificou o seu afastamento alegando que “agora resolvera dedicar-se a aulas de violino, sua verdadeira vocação”.


Das Tripas Coração
Algum dia, quem sabe, eu ainda venha gostar de pescarias, pois as que tenho participado vejo que são bem monótonas.
Há tempos acompanhei uns e outros, em atenção a pedidos, e fomos a determinado lago, água doce, onde havia abatedouro de frangos cujas vísceras eram jogadas diretamente nas águas, através de tubulação.
Sendo assim, diziam, havia peixe em abundância.
Todavia, grande quantidade de tripas, não sei por quê, achava-se espalhada pelo chão, ao ar livre, o que provocava mau cheiro no ambiente fazendo surgir verdadeiro enxame de moscas varejeiras.
Diferente dos companheiros, achei o local por demais nauseabundo.
Acontecia que o tempo passava e não se pescava nada. Falavam que ainda não estava na hora dos peixes “porque têm horário biológico”... Tanto assim, informavam também os entendidos, que os biguás achavam-se pousados adiante (relógio em punho) no aguardo paciente do tempo devido.
De repente chegou o momento de usarmos os caniços, já que as aves passaram a mergulhar na captura de pequenos mandis.
O pior foi que nem havíamos levado iscas apropriadas como, por exemplo, coração de galinha.
Ocorre, ainda, que esses diminutos, mas cabeçudos peixes, uma vez na frigideira, devidamente decapitados, nem se mostram crocantes, gordurosos que são, não convidativos como tira-gostos, diferentes os lambaris. E uma vez decepadas as cabeças, o tal peixinho perde quase trinta por cento do seu tamanho, o que até nos faz lembrar o ávido desconto do imposto de renda em nossos salários.
A verdade é que, na disputa da pescaria com os biguás, nos valemo-nos mesmo do que havia à mão, ou seja, acabamos “fazendo das tripas coração”, para um resultado pífio.

Devorando a Esfinge
"Decifra-me ou te devoro".
Segundo a lenda, a Esfinge era um terrível monstro mitológico que vivia a levar constante pânico aos habitantes de Tebas quase arrazando a cidade ante tamanha agressão ao povo daquela região. Usava do estratagema de desafiar a população com as suas charadas enigmáticas sabendo da impossibilidade de alguém decifrá-las. E a criatura maligna só seria vencida se algum dia aparecesse alguém para desvendar o que ela constantemente arquitetava.
O problema alarmante chegou a tal ponto que o monarca ofereceu honrosa e valiosa compensação a quem livrasse os tebanos de tamanho flagelo. Foi aí, então, que surgiu Édipo e matou a charada acabando de vez com o ente diabólico.
Certa vez, lembrei-me dessa lenda quando participava de farto banquete numa fazenda, convidado que fui em ocasião festiva. É que, em meio a tanta fartura, tanta variedade à disposição dos convidados, vi-me frente a frente com vistosa leitoa assada. Explico: apesar de mostrar-se apetitosa, naquele tom verniz, aparentava, contudo, no aspecto certo ar um tanto impressionante de mistério e altivez ante a maneira como fora arrumada de modo artístico na enorme travessa, conservando as orelhas em pé, como em constante alerta, por se acharem crocrantes, na certa.
Meio ressabiado, encarei o animal ao sentir-lhe, em fração de segundo, algo misterioso; tomei mais um gole do uísque e pensei cá comigo: não estou a fim de fazer-lhe nenhum desafio; não quero dar-lhe oportunidade de desvendar-me qualquer enigma; eu é que vou devorá-la incondicionalmente...
Então o "maitre" aproximou-se com grande faca e iniciou o esquartejamento da deliciosa vítima, ocasião em que notei várias pessoas a meu redor, e com o mesmo propósito.
E por falar em Édipo, também acabamos com a "presa" e sem nenhum complexo, pois não estávamos a fim de histórias.

Do Aquém para o Além
O moço conta que aproveitou certos reparos na casa e ajeitou pequeno baú para deixar escondido, embutido em certa parede de concreto, mensagens para a posteridade, para futuras gerações. A medida consistiu em ali colocar uns escritos dizendo da situação política, econômica, progressos científicos da época, fotos, dados pessoais etc., para possível curiosidade das pessoas de gerações futuras, do além, caso encontrassem a tal caixa.
Aconteceu que pouco tempo depois vendeu a sua propriedade, e o novo dono do imóvel resolveu fazer reforma geral na casa mandando derrubar certas paredes. Aí então, deparou com aquela caixa estranha e resolveu abrir a coisa. Ao verificar que ali continha, entre outras coisas, moedas e cédulas, fez contato com o proprietário anterior dizendo que achara coisas perdidas dele, o vendedor.
Então, este mostrou-se um tanto constrangido alegando que apenas tratava-se apenas de uma comunicação do aquém para o além.

É Barato ou não é ?!
Reporto-me ao ano de 1936, época em que Você que ora me lê seria apenas uma criança, creio.
Acontecia, aos domingos, no bairro em que eu morava – no Irajá, subúrbio do Rio – uma feira de produtos diversificados quando, por ocasião da instalação das barracas, tamanha era a barulheira que acordava os moradores mais próximos.
E eu achava bastante curioso, por exemplo, como determinado feirante, a cada passo, dava alimento a um conjunto de uns seis leitões, confinados em espaço reduzido, jogando-lhes por cima do engradado frio pirão de farinha de mandioca o que fazia com que os bichos disputassem, em atropelo, ofendendo--se em grunhidos loucos, o alimento atirado a esmo sobre os seus dorsos e cabeças.
Até hoje, por incrível que pareça, já lá se vão cerca de seis décadas, permanece-me na memória os estridentes gritos de uma senhora a apregoar os seus artigos de vestuário a entoar, de modo incansável, espécie de slogan: - “É barato ou não é ?!”
Assim, em tais momentos, bem cedo ela associava-se aos galos da vizinhança a despertar a freguesia.
Ao terminar tais reminiscências, fico no aguardo de que Você que ora me honra lendo a presente crônica ache-na também “um barato”, ou não é ?!

Eles, os pinguços
Comentei com o dono do bar que ao manobrar, em determinado estacionamento, eu havia acabado de raspar, ligeiramente, o carro num caixote de madeira. Então, o homem falou que bem a meu lado, no balcão, “achava-se o melhor lanterneiro da cidade”. Ao ouvir a conversa, este prontificou-se a ver o carro logo ali perto, estacionado.
Ao tomar altura do ligeiro arranhão na pintura, ele voltou ao bar e trouxe de lá um pouco de estopa embebida em cachaça; e friccionou o ponto arranhado. Conclusão: o risco sumiu da lataria.
Daí surgiram comentários sobre vários casos narrados por alguns freqüentadores, ali reunidos no momento. Um disse que a mulher costuma cheirar-lhe ao chegar em casa para verificar se havia bebido. Para flagrar alguém, em tais circunstâncias, creio que certa criaturas são mais exatas do que bafômentro.
Houve um outro que falou que usa a técnica de mascar hortelã de modo a disfarçar o hálito. E certo sujeito comentou que a esposa reclamou que ele estava acabando com a hortelã do canteiro, igual praga, observação que fez com que ele passasse a friccionar arruda na proximidade da boca, dizendo tratar-se de simpatia contra mal olhado. Houve um cara, com ares de sábio, a dizer que o melhor jeito, e que dá bem certo, é aproximar-se de um muro caiado e soprar de tal maneira que o cheiro da bebida fica ali impregnado.
Foi aí que sugeri fizéssemos um mutirão de modo a caiarmos a parede do bar para tal fim, mas alertando a “eles”, os pinguços, que se todos fossem ao mesmo tempo, como se estivessem reunidos diante do “muro das lamentações”, e lançassem bafos de uma só vez, na certa a parede viria abaixo.

Elogios e mais elogios
Quando ainda jovem, na incerteza “do que queria ser na vida”, no sentido de preparar-me para o futuro, decidi dedicar-me a concursos públicos. Meu objetivo era o de fazer carreira em alguma importante
Empresa, visando segurança bem como remuneração condigna.
Assim, fui conseguindo sucesso em diversas etapas, a ponto de um prezado parente, coronel do exército, indagar-me “até quando eu estaria a fim de dar tanto orgulho à família...” Respondi que a família já se achava prestigiada por contar em seu meio com uma alta patente do glorioso Exército Brasileiro, que era o seu caso.
Houve também o caso de um dileto sobrinho, cardiologista, que ao saber que eu tomara posse em Academia de Letras, dizer que eu não era apenas “ imortal e sim muito necessário”...
Já minha neta, 11 anos, falou-me que eu “sou o avô que toda criança gostaria de ter...”
Em certa época de alta temporada, em cidade turística, , grande movimento de pessoas no comércio e nas ruas, tive a iniciativa de segurar a porta de certo estabelecimento bancário para deixar passar uma senhora, dando-lhe gentilmente preferência. Foi quando ela falou haver sido esse o primeiro gesto de cavalheirismo da temporada. Então eu disse a ela que era a segunda vez que me diziam a mesma coisa naquele dia...
Aproximei-me da jovem noiva e sussurrei-lhe que o seu futuro esposo era um felizardo ao desposá-la. E para a minha surpresa ela falou que se fosse eu o escolhido, “tinha certeza de que seria ela muito feliz, mas que eu não a esperei...” Então eu disse que não sabia que ela haveria de nascer...
Outro dia, ao completar quarenta e sete anos de casamento, quando despertei a mulher com uma alva e perfumada flor do jardim, e ao trocarmos carícias por ocasião do café da manhã, ela me dirigiu uma significativa frase de efeito maior do que o mais belo e significativo discurso ao dizer: - Você é muito importante em minha vida. Diante disso “um soluço cortou minha voz, não me deixou falar...”, como diz o verso daquela canção romântica.

CALCANHAR DE GALINHA
Num Natal desses, ganhei de “amigo oculto” uma calçadeira de plástico, meio decorativa, um tanto longa, que apresenta de um lado uma mãozinha para se coçar as costas; na outra extremidade é que tem a calçadeira propriamente dita, e que facilita na hora de calçar os sapatos, pois a pessoa não precisa se agachar. Mas como essa extremidade se apresenta bem estreita, mais lembrando cabo de colher de sopa, vem-me à mente que seria bem apropriada para calcanhar de galinha.


AS PASSADAS DA SARACURA
Lá no chão da cozinha, rente à pia, existem dois necessários tapetes que requerem certa atenção.
Ao passar sobre eles, deve-se ter o cuidado de não arrastá-los ou tropeçar. Convém, pois, usar-se o inteligente cálculo da saracura quando dá aquelas passadas características sobre as folhas caídas no chão.

MEIA INVISÍVEL
Não me sinto bem ao usar sapatos sem meia, assim como não usaria calça sem cueca. Os pés descalços, ante algum atrito no calçado, tende a deixar por ali algum resíduo de pele, para satisfação de certos insetos, podem crer. Então, ao comprar um par de tênis, e não querendo calçar meias de cano longo, ou mesmo do tipo soquete, para não ficar parecendo “pombo-calçudo” , isto é, aqueles que apresentam plumagem nas canelas, apelei para as chamadas meias-invisíveis.
Dirigi-me, pois, a certa loja solicitando à balconista tal artigo. Fiquei surpreso quando a mesma me perguntou se eu teria preferência por cor, ao que respondi que não, isto é, desde que fossem invisíveis...

Eis o buraco
Tem havido grande campanha por parte da comunidade, apoiada pela imprensa local, em protesto junto à prefeitura com relação aos inúmeros buracos existentes nos logradouros públicos da cidade. Protesto esse contando com a criatividade de concurso público – de certo humor irônico - no sentido de premiar quem apresentar foto de buraco mais significativo.

Dado o clamor geral, alguma coisa os responsáveis pela solução do problema vêm atendendo.
Entretanto, o que está me deixando particularmente apreensivo é o caso da existência de um deles bem no cruzamento da rua onde moro com relação à outra mais próxima, lugar em que costumo passar de carro. Acontece que, em conseqüência, quase invariavelmente o veículo sofre baque quando me distraio passando em cima dele.
Outro dia, estando “ligado”, procurei evitá-lo e com o cuidando de não avançar um tanto na contramão, mas acabei passando com a roda na ponta da calçada de certaresidência da esquina.
A verdade é que já estou até meio acostumado com o tal buraco, e se a prefeitura resolver, algum dia, tapá-lo, penso que sentirei falta.

Em tempo: E foi o que realmente aconteceu. Ao retornar de viagem, após uns quinze dias, notei naquele ponto um como inoportuno retalho no asfalto a cobrir o tal buraco.


Intuito Macabro
Em viagem de excursão a Buenos Aires, entre diversos e importantes pontos de atração turística constava, como opção, visita ao cemitério da cidade. Isso porque o turista, uma vez acompanhado de guia, pode observar, curioso, jazigos de personalidades que fizeram história no cenário do país.
Um dos túmulos mais visitados é o de Eva Perón, esposa de Juan Domingo Perón, presidente da república de então. Conhecida como Evita, foi ela bastante atuante ao lado do marido, década de 50, em questões políticas quando, agindo com muita firmeza, dedicava-se com empenho a causas sociais voltadas, pois, para os mais desassistidos em detrimento aos interesses dos mais afortunados.
Tal procedimento gerou grande simpatia, até mesmo certa adoração popular mas, por outro lado, provocou verdadeiro ódio por parte da elite, aqueles que se sentiam prejudicados em seus interesses. Por tais motivos, tornou-se personalidade polêmica.
O fato é que, ainda hoje, tem ela a memória cultuada por aqueles que lhe “pagam tributos” através de preces e flores diante do seu túmulo.
Uma vez no cemitério, onde se veem jazigos construídos com certa pompa, fomos informados de que os defuntos de status têm os caixões colocados em subsolo de forma especial de modo a dificultar qualquer acesso. E no caso de Eva Perón, o cuidado com os restos mortais é mais sério por questões políticas, coisa mais justificável naquela época conturbada na vida da nação. O motivo de tamanha precaução deve-se ao fato de, certa vez, o seu cadáver haver sido levado clandestinamente para a Europa. Com o passar do tempo, diante tamanho empenho e contando, inclusive, com ajuda diplomática, o corpo foi localizado na Itália e reconduzido à Argentina.
Aconteceu que, não muito interessado no assunto, afastei-me um tanto do grupo mais curioso que eu me achava a observar, através de grades, o silêncio dos diversos caixões empoeirados e dispostos sobre espécie de prateleiras de concreto, tipo beliche, a comportar vários deles. Mesmo assim expostos, insepultos, não exalam mau cheiro em razão de certa técnica que inclui uso de produto químico, disperso de modo automático.
Em um dos compartimentos poder-se-ia divisar, num canto, ossadas exumadas, empilhadas em urna envidraçada. Diante desse monte fúnebre, um como calafrio perpassou-me ao admitir ali a presença de um espírito guardião de tais despojos humanos a declarar, enfático, que outrora também fora, como nós, amado, atuante, cheio de emoções nesta enigmática existência.
Ao deparar-me com um jazigo cuja porta de grade encontrava-se apenas encostada, adentrei levado pela força da curiosidade pensando na possibilidade de erguer um tanto a tampa do caixão, de modo a verificar o corpo que ali jaz e, assim, avaliar como eu estarei, digo, como também estará o meu corpo em tal situação num futuro talvez já não muito distante, admito.
Tamanho intuito macabro de minha parte não chegou a ser levado a efeito pelo fato de não haver a meu alcance qualquer ferramenta de sorte a permitir-me erguer a pesada tampa. Mesmo porque eu não poderia me demorar ali sob risco de ser interpelado por autoridade responsável pelo local.
Acontece que, de lá para cá, nos meus momentos de insônia, passa-me pela cabeça o instante tétrico em que eu me encontrava a sós, com pensamentos mórbidos, ante o velho esquife envernizado, empoeirado, misterioso, levado por certa ânsia de perpetrar ato profano.